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Magazine Cultural a divulgar Cabo Verde desde 2010
Brito-Semedo, 16 Mai 10
Praça Alexandre Albuquerque, Praia. Foto Arquivo Histórico Nacional (AHN), Praia
O futebol marcou os meninos da minha infância. Tínhamos mesmo ao lado do nosso bairro a sede do Grémio Desportivo Castilho[1], com uma equipa filiada no Belenenses Club de Portugal, e nas traseiras das nossas casas um campo de futebol, o Estádio da Fontinha, para onde dávamos o pinote para ver os jogos.
Tínhamos também uma equipa de juniores, os “Castilhanos”, um largo onde jogávamos à bola e muitos e bons jogadores como Tóva de Nha Júlia, Sûa de Nhô Guste e Hermínio de Nhô Germano, apenas para falar dos mais velhos, que eram nossos vizinhos. O meu tio Lalela, inclusive, chegou a ser um craque, jogando, primeiro, nas equipas do Castilho e doDerby e, depois, em Portugal, terminando a sua carreira como treinador da Selecção Nacional de Cabo Verde. Muitos outros, por vezes vários irmãos na mesma família, como foi o caso dos irmãos Paris, e alguns mais novos que eu, viriam a seguir o caminho do futebol.
Apesar dessa proximidade, nunca fui um “fominha de futebol” nem mesmo disputado pelas equipas dos nossos jogos de bola-de-meia – golo-a-golo ou cinco-trocada-dez-acabada – antes pelo contrário, eu era sempre o último da escolha. Diga-se, com muita pena minha!
Por essa altura, as finais da Taça de Cabo Verde, disputadas entre as equipas campeãs de futebol da Praia e de S. Vicente, eram um acontecimento marcante, com uma forte rivalidade e uma grande dose de bairrismo de parte a parte, especialmente se era a equipa adversária a ganhar.
É facto curioso como foram duas dessas finais da Taça de Cabo Verde, de que não assisti a nenhuma – a do Boavista Futebol Club da Praia contra o Sport Club Mindelense de S. Vicente, em 1963, e a do Club Desportivo do Derby de S. Vicentecontra a Associação Académica da Praia, no ano seguinte – que tiveram um desígnio especial na minha vida.
Praia de Bote, Mindelo. Foto Arquivo Histórico Nacional (AHN), Praia
A primeira, trouxe o meu pai a S. Vicente (onze anos depois de aqui ter estado como polícia) integrado na caravana, na qualidade de antigo jogador dessa equipa de Nhô Abílio Macedo, o que motivaria a minha deslocação para a Praia, e a segunda, que iria levar o meu tio Lalela à Praia como jogador, o que foi determinante para que eu voltasse para S. Vicente.
Não me lembro de lá em casa ter havido qualquer preparação especial para a minha dita “viagem de férias” à Praia. A Mãi Liza, contrariada, só resmungava. O Tio Compadre, um irmão mais velho do meu pai que tinha ido a S. Vicente em negócios, levara a incumbência de me levar consigo. Seria a minha primeira viagem de barco e Manuel Alfredo, da Companhia Colonial de Navegação, a minha estreia. Mas, nem por isso estava entusiasmado. O mar e o desconhecido metiam-me medo!
Na Praia, fiquei a viver no Bairro Craveiro Lopes[2]. Tudo me era diferente, as pessoas, os hábitos, e ainda por cimafaziam tchacota[3] com o meu crioulo de minino di sanvicenti – mas era por pouco tempo, pensava eu.
Gostei de conhecer os meus muitos irmãos, primos e familiares e, sobretudo, gostei dos mimos da nova Avó, a Nha Romualda, e da Bûbû (de seu nome próprio Vitória Moreno Tavares), a mulher do Tio Compadre, que me queriam tcheu[4] e a quem visitava todos os sábados. Eu sentia-me bem na Vila Nova e ficava triste quando chegava a hora de regressar ao Bairro.
Na Vila Nova não tinha obrigações e divertia-me imenso. Ia à água com os primos, montados nos burros. No regresso, estes vinham à frente, todos em fila, carregados com bóias de câmara de ar cheias de água, e nós, atrás, na brincadeira. Quando eu chegava, tinha sempre lanche à minha espera em várias casas da família. Ele era leite dormido[5] com cuscuz ou bolacha, ele era mel com queijo de cabra, ele era manguinha-da-terra ou manga-bijagó. Nunca comi tanta manga – “manga sima paia!”[6], dizia eu, todo enlambuzado. Eu era o neto, o sobrinho, o irmão e o primo “novo” e, por isso, querido e mimado por todos. E como eu adorava tudo isso!
Certa vez, decidi mesmo pernoitar na Vila Nova, em casa da minha Avó, mas à noite, o meu Pai foi-me buscar e bateu-me com o cinto por ter sido desobediente. Era a primeira vez que me batia e seria a última, disse para mim mesmo! E como o detestei nesse dia! E a verdade é que nunca lhe viria a chamar pai. Eu queria voltar para a Mãi Liza! Queria voltar para casa e para os meus amigos da Chã de Cemitério!
Chegado o mês de Outubro, altura em que devia voltar para S. Vicente, fui informado de que iria ficar na Praia para continuar os estudos – decisão do meu pai. Mais tarde fiquei a saber que a Mãi Liza tinha apresentado queixa à Administração Civil para que eu regressasse, mas, devido ao conhecimento do meu pai com o então Intendente Artur Santos, isso não tinha dado em nada. Como último recurso, a minha avó recusou-se terminantemente a mandar os documentos para eu poder frequentar a escola na Praia, mas Estêvão contornou a questão.
A estratégia foi mandar-me para uma escola não oficial, recorrendo à da Igreja Adventista do Sétimo Dia – ele que era católico praticante, tendo chegado a ser sacristão! – com o compromisso de entregar os documentos logo que os recebesse. A pressão resultou e a Mãi Liza cedeu, pois, de contrário, quem iria ficar prejudicado era eu e isso ela não queria. Voltei a detestar o meu pai e cheguei a desejar que ele desaparecesse!
Adaptei-me na escola, gostei do professor, James Schofield, jovem, atleta, muito simpático; arranjei novos amigos e passei a participar da Escola Sabatina da Igreja (correspondente à Escola Dominical da Igreja do Nazareno, que viria a frequentar mais tarde), voltei a ser bom aluno. Tornei-me um “badizin d’Praia”. Fiz a 3.ª classe e, no ano seguinte, a 4.ª classe e preparei-me para a Admissão ao Liceu.
Não recebia notícias de S. Vicente e morria de saudades da família. Sentia falta da Mãi Liza, da Xanda, do Lalela, da minha irmã mais nova, a Liliza, dos meus amigos de brincadeira, enfim, de tudo e de todos. Entretanto, o meu tio Lalela veio à Praia defender a camisola do Derby contra a Académica, na Taça de Cabo Verde, no célebre jogo muito contestado pelas múltiplas irregularidades, tendo o meu tio chegado a ser expulso do campo. Ao vê-lo, rompeu-se-me o dique e chorei como um bezerro desmamado. Nessa hora, então, decidi que não ia viver mais com o meu pai e que ia voltar para S. Vicente!
Por essa mesma altura, apareceu alguém lá no Bairro a vender rifas para uma bicicleta e o meu Pai mandou-me escolher uma. Saiu-me o prémio, mas Estêvão não me entregou a bicicleta, justificando que me ia perturbar nos estudos, pelo que a pendurou no tecto da dispensa! Eu não entendia esse comportamento e passei a detestar o meu pai ainda mais! Se antes nos víamos pouco, passei a evitá-lo.
Feitos os exames, foi-me dado a escolher: ter a bicicleta ou ir de férias a S. Vicente. Sem hesitar, escolhi a última opção, com a firme intenção de ir e nunca mais voltar! E cumpri! Quando voltei, foi como adulto autónomo, com vida independente.
[1] O único que até hoje conheci, fundado em homenagem a um escritor português, o romântico António Feliciano de Castilho (1800-1875). A parte recreativa ocupava-se da realização de peças teatrais e da promoção de saraus culturais e bailes para os sócios, enquanto a parte desportiva promovia o futebol e o ténis.
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
Um belíssimo texto este da senhora Sónia Jardim. T...
Interessante que isto me lembra um estória de quel...
Muito obrigado, m descobri hoje e m aprende txeu!!...