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As Esquinas das Estórias

Brito-Semedo, 15 Fev 10

 

Esquina Banco.jpeg

Foto Arquivo Histórico Nacional, Praia

 

 

Para os meninos da minha infância da Chã de Cemitério, periferia da cidade do Mindelo, ilha de S. Vicente – estou a falar dos anos sessenta – as pontinhas (esquinas ou pontas de esquina do nosso bairro) tiveram uma função importante de socialização, de iniciação na vida adulta e de transmissão de conhecimentos, sendo, portanto, suportes da nossa memória tanto colectiva como individual.

 

As nossas brincadeiras da infânica ou da meninência estavam praticamente circunscritas a dois grandes largos. Um era o Largo John Miller, que se estendia da estrada, situada entre os clubes de ténis do Castilho e do Mindelo, até à Praça da Salina (Praça Estrela). Do outro lado da estrada ficava o nosso largo, sem qualquer placa ou nome oficial, mas delimitado por duas importantes referências naturais: a pontinha de Nhô Fonse, num extremo, e a pontinha de Nha Teresa, noutro, com as nossas casas no espaço circundante.

 

Ao Largo John Miller íamos caçar pardais, aprender a andar de bicicleta, comprar bolachas na Padaria Jonas Wahnon e fazer recados e pequenas compras na Mercearia Lizardo, do Nhô Ventura. Contudo, era no nosso largo que passávamos a maior parte do tempo. Ali, durante o dia, jogávamos à bola, saltávamos ao eixo, fazíamos as guerras-de-cavalo e o jogo de corrida-a-pau, passávamos calaca[1] e andávamos à pancada e, à noite, reuníamo-nos para ouvir histórias contadas pelos mais velhos.

 

Era na ponta de esquina da Nha Teresa ou do Nhô Fonse, iluminada por um único poste público que dava uma luz amarelada e fraca, que, à noitinha, depois de comermos à pressa a nossa cachupa sepulkóde[2], nos reuníamos com os colegas e aprendíamos dos mais velhos, através das histórias do cinema, do maravilhoso e do fantástico. E tínhamos então gente boa a contar estórias, como Tchéta de Nhô Germano, Funhû de Nhô ‘Nton Bertôl, Lalela de Nha Liza e Lije de Nhô Fonse.

 

Outro grande contador de estórias, mas com uma predilecção sádica para nos aterrorizar com os casos das feiticeiras e das almas de outro mundo – da capotona[3], da catchorrona[4], do gongom[5], da canelinha[6] e dos maçongues[7] – era o César de Nhô Guste, aquele rapaz magricela, muito esperto, de sorriso franco e olhos arregalados, que emigrou cedo para a Terra-Longe[8] que tem “gente-gentio”, na linguagem do poeta, que ficou por lá e de onde não voltará nunca mais.

 

O problema surgia quando éramos chamados para irmos para a cama e tínhamos de fazer o percurso de regresso a casa, com pouca luz ou às escuras, e as sombras dos montes de pedra, das charuteiras, dos tarrafes[9] e das tamareiras, abanadas pelo vento, nos faziam evocar aquelas figuras. Morríamos de medo e corríamos aos ziguezagues para as despistar, com esconjuros na boca!... Isso, sem falar ainda do facto de algumas das nossas casas, como a minha e a do André do Nhô Guste – mas este era destemido! – ficarem lá para as bandas do Cemitério de Inglês e do Cemitério Velho, ainda que desactivados há muito. O Cemitério Novo, o nosso dezoito-dois-oito pela  data em que foi construído, 1888, lá pelas bandas da Ribeira de Julião.

 

Dessas esquinas ficou-me o gosto pelas estórias, pelo desvendar de mistérios e pela busca de conhecimentos, o que havia de me levar ao estudo, à literatura e à etnologia de Cabo Verde.

 

Depois de alguns desafios e incentivos da minha mulher para sair da oralidade, decidi, finalmente, pelo registo da “colecção” das minhas estórias, daquelas que contam de mim e de um tempo cujas vivências são diferentes das de hoje, como forma de sublimar as experiências e as emoções fortes que me marcaram.

 

É, pois, sobre factos, figuras e vivências da minha infância e adolescência que me proponho, encostado a esta Esquina do Tempo, partilhar, como homenagem àquela que foi a figura marcante dessa fase da minha vida, a minha Avó, Mãi Liza (S. Vicente, 1907-2001), em memória da Silvinha, a Minha Menina Caçula[10] (Lisboa, 1987-2008), que não chegou sequer a lê-las, e em reconhecimento à Mãi Xanda (S. Vicente, 1933-2009).

 

– Manuel Brito-Semedo 

  


[1] “Passar calaca” é o mesmo que “passar calapada” ou passar rasteira.

[2] Cachupa mal cozida ou por apurar.

[3] Ser masculino assutador que aparece a desoras, usando um grande capote aberto, que cresce na proporção directa do medo da pessoa, do “cristão com quem se cruza.

[4] Um cachorro que aparece tarde da noite, que começa por ser pequenino e vai crescendo até ficar enorme, e que é asustador.

[5] Figura medonha, podendo ter origem em uma ave de mau agouro existente em Santo Antão com este mesmo nome.

[6] Ser muito magro, de uma única metade (só ossos), que corre sempre em linha recta para não se desconjuntar.

[7] Maçons que, segundo a crença popular de então, pagavam aos incautos para entregar cartas de morte.

[8] Eufemismo para dizer que partiu para a eternidade, morreu.

[9] Arbusto grande, 2 a 5 m de altura, de nome científico Tamarix senegalensis, muito ramificado e com folhas pequenas em forma de escamas. Por vezes, forma-se um tronco visível.

[10] Filha mais nova.

 

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23 comentários

De Rosi Fonseca a 22.02.2010 às 01:33

Passando a revista as minhas tropas e eis que me encontro com este Blog :). Amei o post. Vai ja para os meus preferidos.
Sodade de solera de porta pa uvi storia.
Bijin
Rosi

De Brito-Semedo a 22.02.2010 às 11:41

Ô k sábe! Bon pa komesá dia! Que imagem bonita essa sua (recuei ao meu tempo de diazá)! Farei por isso! Se eu não estiver à altura, pedirei ajuda ao Constantino Cardoso para invocar as Memórias d'Mindelo, isto a propósito da sua música de Carnaval "Iolanda ca ta casá, ôpe!"

Bijin repnikód!

De Fonseca Soares a 24.02.2010 às 21:34

Adorei!!! Força com este projecto que nos há-de, a todos, deliciar. Abraço
Tchá

De Brito-Semedo a 24.02.2010 às 21:52

Caro Amigo,
Obrigado pela força e ânimo! Ao desafio, respondo: Pronto! Espero corresponder às expectativas!

Um braça forte,

De Fonseca Soares a 25.02.2010 às 13:41

Regresso para acrescentar algo que esqueci no primeiro comentário: gostei de ver referencia ao teu contador de estórias, Liz de Nhô Fonse, por sinal meu tio que, há bons anos não vejo, pois também ele emigrou para as tais terras de 'gente-gentio'...
Abraço
Tchá

De Jair Neves a 26.02.2010 às 15:11

como está, professor Brito - Semedo? Que júbilo ter encontrado este seu blog que, decerto, tem muito para nos oferecer - de uma pessoa sábia e humilde só podemos esperar boas novas! Que Deus lhe dê muita saúde , força e disponibilidade para compartilhar connosco, amantes das letras, as suas histórias ", o seu saber...
Felicitações académicas. Jair Neves

De Brito-Semedo a 26.02.2010 às 23:29

Obrigado, Jair, volte mais vezes à Esquina do Tempo, que prometo cá estar para contar e mostrar um pouco daquilo que gosto.
Um abraço

De Anmarata a 02.03.2010 às 15:06

Não fui convidado nem achado para o "txin-txin” ou para deglutir os saberes do Na Esquina do Tempo. Mas como já dizem os "homi garandi” da adoptiva as novas não pedem licença. Cá estou saído das tardes ou noites com ou sem chuvas prolongadas no tempo. Como sempre apareço com a “sombrinha negra” aberta ou silenciosa nos ombros e o inevitável galocha, desta vez, para compartilhar este espaço que penso do saber e desejar-te força e persistência. Vale a pena não só para os meninos da infância da Chã de Cemitério, mas também para os estudantes e intelectuais na sanha do saber.

De Brito-Semedo a 02.03.2010 às 17:51

Convida-se e é-se formal com os estranhos, mas os amigos aparecem, fazem-se convidados e participam da festa. Há sempre mais um lugar à mesa, uma canequinha de café quente e bolacha de Manel de Matos. Entra, pois, no grupo e participa das estórias . Eu sei que a "chuva branca" ou a falta dela nunca foi impedimento para ti. Um abraço rijo e de compadrio.

De Jorge Silva a 02.03.2010 às 15:37

Como um MENINO de Tchã de Cemiter ", mas não da tua época , pois sou a partir do anos 70, mais precisamente 1972, deliciei em ler estas Estórias , pois me identifico no espaço e ainda na maioria dos nomes relatados! Valeu e que haja continuidade! Abraços, Jorge Silva (Cocá) .

De Brito-Semedo a 02.03.2010 às 17:58

Bem-vindo à Associação dos M'ninos de Tchã de Cimiter (AMTC). O lugar de encontro regular é aqui, na Esquina de Nha Tereza ou de Nho Fonse, sem tempo e sem pressa. Ah, traz um colega contigo! Um abraço,

De Arnaldo a 01.04.2010 às 02:33

Quem não traria o chapêu a esse homem? ele partilha tudo com o mundo, principalmente com a camada mais jovens que muita vezes perguntam, como vevia os nossos país nas suas infâncias,será como nós vivemos as nossas? e aqui ele mostra que tudo que vivemos hoje já foi das suas infâncias. Lindo isso!SENHOR BRITO, trousse nos hoje aquilo que nos falta de documentos e histórias contadas. parabéms BRITO

ARNALDO BORGES (US)

De Brito-Semedo a 02.04.2010 às 20:36

Caro Arnaldo, A vida tem de ser de partilhada, bem como os afectos, as coisas boas, enfim, tudo aquilo que pode enriquecer o Outro. Apreciei as suas palavras e o reconhecimento expresso. Apareça mais vezes Na Esquina do Tempo pois pode ler estórias interessantes e divertidas de diazá e outrs coisas mais sérias sobre a cultura literária nossa. Um abraço!

De Carolina a 15.06.2010 às 22:06

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Prazer em poder deixar uma linhas e dizer que me sinto orgulhosa de fazer uma entrada, mesmo sem ser convidada, com a certeza de que serei recebida com aquela abraco amigo que nao se detem perante distancias e tempo e faz a sua travessia, sem receios.

Por uns dias em Lisboa mas de regresso a Maputo.

Tudo de bom e suscessos nos teus projectos.

Aquela AMIZADE mocambico-caboverdeana.

Carolina

De Brito-Semedo a 16.06.2010 às 01:54

Querida Amiga Carolina, "Na Esquina" todos são convidados e todos bem-vindos! É só ir encostando ou arrastando um mocho, apresentar-se e participar da conversa/leitura, partilhar e usufruir. Mais a mais quando se é da casa, ainda que bastante tempo fora. Quando as saudades apertarem e apetecer, é só parecer. Um abraço bem verdiano e com saudades do Índico e da Cidade das Acácias.

De Esther Spencer Lopes a 27.09.2010 às 16:17


 

Determinei uma hora em que quotidianamente munida do meu “mocho” sentar-me-ei na tua esquina e sorver grandes goles do teu menu. Tem-se a sensação que está sempre de fresco pintado. Ah! Já me ia esquecendo: O meu copo de sumo de "tambarina" vem comigo. Parabéns.

Esther

De Brito-Semedo a 27.09.2010 às 16:35

Obrigada, Esther , já fazias cá falta! Sejas bem aparecida!
Como vens com o teu sumo de tambarina , a tua despesa é só do cuspo (da conversa), hihihi! Mas sempre podemos servir um cházinho d'erva, um cafezinho de Santo Antão ou do Fogo, ou uma supirinha de Galeano (essa não conheceste)!
Valeu o estímulo! A minha responsabilidade como dinamizador do "Na Esquina" aumentou! Um abraço!

De Lando Freire a 08.02.2012 às 16:09

Bom artigo. Se não for pedir demais, gostaria que publicasse, sobre as figuras míticas do nosso imaginário crioulo, principalmente sobre o capotona.
Obrigado

De Brito-Semedo a 08.02.2012 às 18:01

Caro Amigo, Acabei de falar com o Antropólogo João Lopes Filho e ele disponibilizou-se a preparar um pequeno texto sobre a questão do medo e essas figuras aqui referidas do imaginário caboverdiano. Aguardemos! Um abraço,

De Lando Freire a 08.02.2012 às 18:27

Obrigadissimo. Fico aguardando, o meu filho está a fazer-me marcação serrada.

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