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Esquina do tempo por Brito-Semedo © 2010 - 2015 ♦ Design de Teresa Alves
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Magazine Cultural a divulgar Cabo Verde desde 2010
Brito-Semedo, 18 Fev 10
Depois de vários anos, voltei em Dezembro de 2006 a S. Vicente. A viagem à minha terra foi motivo para uma outra, há muito adiada, mas ocasionalmente sonhada, a do regresso ao Mindelo da minha infância. Os meus passos levaram-me a Chã de Cemitério e a minha memória, aos lugares da minha meninência.
Abalei da Morada (o centro da cidade) mais precisamente, do Aparthotel Avenida, situado na Rua 5 de Julho, a Rua do Telégrafo ou a Antiga Rua Inglesa, deixando para trás a Praça Nova, com o propósito de visitar uma “menina do meu tempo” em Monte Sossego, na Rua 1, tendo planeado passar antes pelo atelier do amigo e também rapaz desse tempo, Tchalé Figuera.
De caminho entrei na velha Alfândega de D. Pedro V, hoje Centro Cultural do Mindelo, para espreitar a livraria, apreciar as exposições de artesanato – uma de instrumentos musicais, outra de bonecas de pano e ainda uma outra de bordados – e visitar as lojinhas, à procura de alguma recordação interessante.
Saí pela Avenida Marginal e desemboquei no velho Cais da Alfândega onde, nas noites de S. Silvestre, ia com a minha avó, a Mãi Liza, ouvir o apito na Baía à meia-noite, enquanto os mais adultos se atiravam ao mar para receber o Ano Novo, banhados e purificados do Ano Velho.
Espreitei a Praça dos Aviadores, construída para assinalar a travessia do Atlântico por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, passei para a calçada da Biblioteca Municipal, avancei em direcção aos velhos quintalões da companhia carvoeira, que voltou a dar lugar à Praça D. Luiz, e caminhei, “straight”[1] pela Rua da Praia.
Praça Estrela, Vista da Capitania Velha
As casas de inglês (Millers & Cory), os botequins e a estação de serviço da Shell ficaram para trás e postei-me de costas à frente da Casa de Ti Djô Figuera, ship-chandler, a olhar para a velha Capitania (uma réplica da Torre de Belém), a estátua de Diogo Afonso, o navegador e descobridor da ilha, os pescadores a jogar cartas ou a consertar as redes, a Baía do Porto Grande e o Monte Cara.
O Tchalê recebe-me de tronco nu a trabalhar em grandes telas a preto e branco, acompanhado de música clássica em alto som. Fala-me com entusiasmo da nova exposição que estava a preparar e oferece-me uma gravura.
Decidi dar uma olhadela ao antigo Quintal da Vascônia/Ferro & C.ª onde íamos comprar as nossas latas de “água-doce” para beber (a outra, a salobra, era comprada nas Águas do Madeiral para a serventia da casa) e entrar no Pelourinho de Peixe, sempre limpinho e bem organizado – Olí atum ma djéu!... Bocê bem comprá pêxe!... Bem vindide![2]
Não resisti a dar uma espreitadela ao velho Matadouro Municipal e ao velho Caizinho de despejo, que ainda hoje invoco como metáfora quando fico danado com alguém: – “Vai dar um pulo no Caizinho!”.
Lembrei-me ainda do canalinho do Caizinho que conduzia ao portão do Miller’s, para lá do qual havia uma pequena praia com alguns botes da Companhia e uma ponte-cais de madeira onde uma vez quase morri afogado. Aconteceu que os meus companheiros me atiraram à água, não lhes tendo ocorrido que eu não soubesse nadar! Engoli alguns “pirolitos” antes de me içarem, mas apanhei um grande susto.
Quando cheguei a casa, a notícia do meu “afogamento” já me tinha precedido. Ainda assarapantado com o que me tinha acontecido, apanhei de lato[3] pela minha desobediência, porque podia ter morrido, dizia a Mãi Liza ainda assustada. É que, por várias vezes, ela tinha-me proibido de ir com os amigos à Cova de Inglesa ou ao Quintal de Miller’s tomar banho de mar. E o resultado estava aí, à vista! Continuo até hoje, passado muitos anos, pouco à vontade com os mistérios e os segredos do mar.
Cruzada a Salina, a nossa Praça Estrela de “corridas-a-pau”, jogos de botão e “guerras-de-cavalo”, contorno à direita e subo o Monte Craca pela Rua do Matadouro Velho. Paro para cumprimentar a D. Elvira, a viúva do Sr. Ernesto Medina, observo a casa em que viveu B. Léza (oficina do Sr. Cláudio Freitas), onde uma placa regista o facto, e entro em casa da Nha Gusta do Djô do Chico para “dar uma falinha”. Outra vez na rua, contorno à esquerda bordejando a Mercearia de Nha Maria d' Aguste. Passo a casa da Nha Rosára e sigo em frente.
Acerco-me da minha Escola Primária e observo o largo das minhas brincadeiras, que hoje de largo só tem o nome (John Miller) – a ENACOL[4] instalou-se nele com uma estação de serviço, ocupando-o todo – lugar onde ia apanhar pardais, fazer recados e pequenas compras na Mercearia Lizardo, do Nhô Ventura, e na Padaria do Sr. Jonas Wahnon e andar de bicicleta alugada ao Cabóda, ao Bzugue e ao Djunga de Transval, em fracções de dez minutos a dez tostões.
Evoco a minha professora da primeira e segunda classes, de quem gostava muito, a Menina Lourdes Matos (Serradas), e recordo a Nha Auta, mulher franzina que coxeava, nossa vizinha e encarregada da escola, pregando-nos descomposturas devido às nossas correrias e atropelos ao regressarmos dos recreios com os pés sujos de terra castanha do jogo da bola e da corrida-pau, a fazer barulho no soalho.
O coração acelera-se-me, pois estou a chegar à minha velha casa, a terceira de uma fiada de quatro casinhas baixas (já foram cinco!) de uma porta e uma janela, situadas mesmo em frente à Fábrica Favorita, conhecida como Padaria de Matos. As casas têm as marcas da passagem do tempo e do abandono e a nossa, de tão degradada, tem blocos no lugar da porta (ela é tão pequenina, meu Deus!... Reduziu-se o seu tamanho em relação à minha memória).
Monte Sossego, Rua 1
Fecho os olhos e recuo no tempo. Vejo-me criança a cuidar da minha irmã e, também, da venda de guloseimas; ouço a minha mãe Xanda a cantar “... Ê ca lua, ê ca ‘strela / Ê ca pérola di mar / Ê ca feitiço ê ca sôdade / Ê madrugada na bôs ôdjos / ê sô bôs ôdjos Xandinha” [5]; sinto o cheiro intenso do café-xicória acabado de fazer.
O olfacto prende-me ao passado e evoco lembranças e emoções, ao mesmo tempo que descubro outros cheiros e outras estórias. Parece que a Mãi Liza chama por mim lá de dentro, para ir tomar o meu restinho de café pela sua caneca de esmalte.
– Tu és o Lalela de Nha Liza?! Oiço alguém perguntar. Desperto e volto à realidade.
– Sim, o Lalela de Xanda de Nha Liza! E bocê, quem é?
– Adé, eu sou o Funhû, de Nhô ‘Nton Bertôl! Não me reconheces?!
Trocados os abraços, seguimos juntos para Monte Sossego a conversar sobre o tempo d’ nha mninénsa.
[2] Olha atum e serra!...Venha comprar peixe!... Bem pesado!
[3] Cinto.
[4] Empresa Nacional de Combustíveis e Lubrificantes.
[5] “Esses teus olhos Xandinha”, in “Xandinha”, morna de Dante Mariano (letra) e Amândio Cabral (música).
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
Um belíssimo texto este da senhora Sónia Jardim. T...
Interessante que isto me lembra um estória de quel...
Muito obrigado, m descobri hoje e m aprende txeu!!...
Alvarito