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Esquina do tempo por Brito-Semedo © 2010 - 2015 ♦ Design de Teresa Alves
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Magazine Cultural a divulgar Cabo Verde desde 2010
Brito-Semedo, 30 Ago 11
Foto Arquivo Histórico Nacional (IAHN), Praia
O título deste Blogue, “Esquina do Tempo”, faz-me recordar as esquinas dos tempos da minha meninice e logo vou inevitavelmente parar à zona onde vivi, a partir dos 7 anos, até sair de Cabo Verde – Fonte Cónego, exceptuando um interregno de 2 anos em que morei na rua de Serra, perto do liceu Gil Eanes.
– Adriano Miranda Lima, Portugal
Havia em Fonte Cónego uma esquina que funcionava, sobretudo ao cair da noite e até à hora decente de recolher ao leito, como ponto de animado encontro de grupos de rapazes que se constituíam em função das idades, excluídas outras afinidades, mas que se aglutinavam quando era para ouvir as inocentes histórias de gongon e do ti lobo e canilinha ou o relato dos últimos filmes exibidos no Eden Park e no cinema do Tuta.
Entre os mais entusiastas do espectáculo cinéfilo, destacava-se o “Moraizinho”, filho do nhô Caquim Morais e irmão, mais velho, do Djene Morais, ex-funcionário do Telégrafo Inglês e mais tarde da Shell. Ora, o Moraizinho era o sheriff que impunha toda a sua autoridade, por vezes com certa jactância, e tutelava todas as conversas, inspirando um certo temor aos mais novinhos, como eu. Ele seria pelo menos uns 8 anos mais velho que os do grupo mais jovem. O Moraizinho tinha na massa do sangue o culto do cinema e os western eram a sua perdição, a ponto de o seu quotidiano sofrer uma influência mimética do que absorvia na tela. Ouvíamo-lo com reverencial atenção contar as peripécias dos duelos de pistola ou de pugilismo entre os sports e os bandidos e descrever a tensão que pairava nos saloons no prelúdio do afrontamento entre o herói e o vilão. Foi principalmente pela sua boca que ouvi pela primeira vez os nomes de actores como Gary Cooper, Jonh Wayne, Alan Ladd, Randolph Scott, Joel McCrea, Errol Flynn e tantos outros, e de tal modo era a sua eloquência que nos inoculava o bichinho do cinema e similar predilecção pelos filmes de cowboys.
Tinha eu os meus 8 ou 9 anos quando, com alguma frequência, ele organizava os jogos de “mãos ao ar”, stick out ou hands up, como então se dizia. Mas, nós, os mais novinhos aí não entrávamos nem metíamos o bedelho, limitando-nos a assistir, entusiasmados com o empolgamento das cenas protagonizadas pelos juniores, que não raro aprisionavam e amarravam bem firme um ou outro chefe de “bandido” dos grupos adversários e deixando-o abandonado no mais esconso daquelas rochas sobranceiras ao Alto Selarino. Ocasiões até houve em que os jogos se transferiram lá para uns arrabaldes mais solitários e mais condizentes com os cenários desérticos do Arizona, só faltando os cactos, e nessas alturas entrava mesmo em cena uma bela mula do pai do Moraizinho, que este montava assumindo todo altaneiro o seu papel de sport. Mas claro que não nos limitávamos a ser passivos espectadores do desempenho dos mais velhos. Criávamos, dias depois, os nossos próprios jogos de “stick out”, com as mesmas regras que pautavam os dos juniores mas com a intensidade e duração compatíveis com o escalão juvenil, digamos assim em alusão à hierarquia organizativa do futebol.
Enfim, o jovem Moraizinho é uma recordação imperecível no espírito de todos os meninos que o conheceram e que com ele privaram, embora neste caso mais como espectadores silenciosos do que como verdadeiros comparsas, porque ele só dava confiança aos mais próximos dele em idade.
Emigrou para o Brasil e nunca mais o vi. Figura destacada no meu imaginário infantil, nunca o esqueci e muito gostaria de um dia o reencontrar e abraçar para recordarmos os tempos do farwest de Fonte Cónego.
Tenho bem viva a memória de todos os nossos vizinhos daquele tempo, que integravam uma comunidade em que todos se relacionavam com simpatia, afecto e espírito de solidariedade. Menciono os já citados Morais, a família Teixeira (nhô Djandjam, compadre do meu pai), a família Vitória (nha Matilde e seus filhos Daniel, Fininha, Titú e Jorge), a Família Dias (nhô José Dias, presidente do Castilho), a família Gamboa Matos, a família Almeida (José Almeida, mulher Quinha e filhos), a família Silva (enfermeiro nhô Manuel de Mexô), a família Vera Cruz Pinto (o velho nhô Moxim Pinto), a família Marques (um dos sócios do Eden Park), nhô Adão Almeida, o nhô Jom Teca, o nhô Djindja (electricista), o nhô Cabo, o nhô Batcha, dono de uma loja numa pequena elevação de terreno hoje irreconhecível, o nhô Vasco Fonseca, a família Santiago Gomes (nha Ilda e filhos), o pastor protestante Manuel Ramos e família, etc. É claro que cito principalmente apenas os nomes dos chefes de família, pois seria por demais exaustivo incluir todos os membros dos agregados, de que, aliás, me recordo muito bem.
Mas também é impossível esquecer a Pantchola, mulher típica do povo que vinha de fora, não sei de onde, e se instalava numa outra esquina com uma venda de rebuçados e sucrinha. Do mesmo modo, guardo na memória a velha e muito volumosa nha Maria Paulina, que tinha uma lojinha de pão (pão de trigo, de trança, de milho, pão doce e barão) situada no outro vértice da esquina ocupada pela Pantchóla, lojinha no interior da qual estava pendurado o retrato do seu fidje mótche com boné de marinheiro, embarcado diazá para terralonge, mas que nunca por lá apareceu. Ah, lembro-me muito bem de uma rapariga simpática e trigueira que vinha do alto do Selarino com uma bilha do leite que vendia pelas casas todas.
Dos membros dessas famílias, os mais próximos do Moraizinho para as cowboyadas eram, pela idade, o Jorge Vitória (já falecido), o Jorge Ohnet, o Manuel Dias (já falecido), o Xisto Silva, o Ney Gamboa Matos, o Elísio e o Armindo (emigrados pouco tempo depois com a mãe para a Argentina, um deles já falecido), o Zeca da nha Elisa, o Malaquias de Jom teca, o Jorge Fonseca, entre outros. Do meu grupo de futeboladas e de imitação das cowboyadas dos mais velhos faziam parte os filhos do Djandjam, isto é, o Djibito, porque o Oldegar, mais velho, tendia para o Moraizinho, o Nelson Santiago Gomes, os filhos do nhô Cabo, Feliciano e Humberto (ambos já falecidos), os filhos mais novos de nhô Jom Teca, Djosa e Basílio (um deles já falecido), o filho mais novo de nhô Batcha, Tony (creio que já falecido), o Carlos de nha Neza, o Arlindo (Jimba), neto de nhô Manuel Enfermeiro, o Carlos Almeida, que ainda vive na zona, etc.
Regressei ao lugar em 2002, quase 40 anos depois da minha saída. Percebi que só por mero acaso poderia lá encontrar-se ainda uma ou outra das pessoas da antiga vizinhança. Mas logo soube que o Arlindo (Jimba), antigo companherinho, ainda lá vivia, e por sinal na mesma casa de outrora, ou seja, a dos avós, assim como os filhos do nhô José Almeida, tendo mesmo encontrado o mais velho, o Luís, que faleceria anos depois. Também fui informado de que o pastor Manuel Ramos ainda lá vivia e na mesma casa, facto que me sensibilizou porque ele era, na zona, o único sobrevivente da geração do meu pai. Quase todos os outros a lei do tempo os levara na sua inexorável voragem. Outro sobrevivente que eu reencontrei foi nha Alice, viúva do nhô Djandjam, mas a viver em outro lugar na companhia da sua filha Tula.
Pois bem, fiz tenção de visitar o Jimba, aliás retribuindo a visita que me fizera à minha chegada a S. Vicente. E logo de seguida resolvi ir à casa do pastor Ramos cunquir-lhe à porta, tendo-me recebido muito simpaticamente mas já não se recordando de mim e da minha família, porque a avançada idade pareceu-me que já lhe tinha apagado certa memória. E no entanto, à minha saída, veio à porta, amparado na sua bengala, despedir-se de mim, sem deixar de me aconselhar cautela no regresso a casa porque a noite tinha acabado de cair, dizendo-me que “os tempos já não eram como antigamente”. Em boa hora, decidi ir visitar o velho pastor Ramos, porque poucos anos depois ele viria a falecer, tendo eu então escrito um texto evocando a sua acção pastoral no lugar em que vivíamos.
Ao revisitar a zona das minhas vivências de menino e moço, onde dei pontapés em bolas de trapo num largo em que a calçada já tinha substituído o piso térreo, senti o poema que redigi nessa mesma noite, madrugada dentro, e que aqui vos deixo como expressão de um sentimento que sobrevive a todas as metamorfoses da vida, dos tempos e dos lugares. Nem as dificuldades e as incertezas que de um modo geral marcaram os tempos mais recuados das nossas vidas conseguem toldar o recinto onde se resguarda o que de puro, belo e mágico sublima a memória das nossas infâncias.
Enfim, eis o poema…
(À memória da infância vivida em Fonte Cónego)
REVISITANDO FONTE CÓNEGO
Presa na memória, a bola de trapos
Vai e vem, com simulacros de pêndulo,
Em movimento errático e mofino,
Na esteira das balizas que se perderam
Com a geometria progressiva das ruas.
Ressalta na parede da velha esquina,
De cal nostalgicamente poluída,
Onde ficaram para sempre estampadas
As travessuras dos meninos de outrora.
Mas já sem o afago da antiga poeira chã,
A bola desvia-se e, sem cerimónias,
Saltita para as casas da vizinhança,
Acordando recordações adormecidas
E emolduradas nas paredes domésticas
Entre a penumbra e o silêncio.
Surpreende olhos atrás das persianas,
Pasmados com o rosto enigmático do dia,
Que hoje parece mascarado de fantasia,
Fazendo lembrar sonhos que o tempo deliu.
Surge o sol inclemente do meio-dia,
A hora dilecta do temido minguarda,
E calaram-se as vendedeiras de rua
E os cães irrequietos presos nos quintais.
E a bola de trapos seguiu o seu destino,
Costurada com farrapos de ilusão.
S. Vicente, Julho de 2002
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
Um belíssimo texto este da senhora Sónia Jardim. T...
Interessante que isto me lembra um estória de quel...
Muito obrigado, m descobri hoje e m aprende txeu!!...
Prosas como esta merecem publicação em papel.
Grande braça
Djack