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Esquina do tempo por Brito-Semedo © 2010 - 2015 ♦ Design de Teresa Alves
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Magazine Cultural a divulgar Cabo Verde desde 2010
Brito-Semedo, 26 Set 11
– Sónia Jardim, Portugal
Do oceano nasce a vida, a vida transforma-se em terra, criando um novo dia, o nascimento de uma cultura ávida de saber e profundamente sábia... a cultura cabo-verdiana.
Santo Antão, a ilha de Santo António do Egipto.
Embora não evoques o Santo António de Lisboa, o teu nome apela ao milagre, ao santo casamenteiro... Todos que te visitam contigo casam.
Eu, como João Piquinote, pouco te ofereci, ou talvez não... Ao mar, uma isca também atirei: “Para ti, mar amigo, e para teus peixes”.
E, como João Piquinote, o milagre aconteceu: um esticão na minha linha, um peixe-sereia que me pediu para soltá-la em troco de um fio do seu cabelo.
No fio do teu cabelo, Santo Antão, ofereceste-me todos os desejos do mundo e, com enorme bondade, ofereceste-me o que está para além, o mar e o céu...
Escrever sobre Santo Antão é escrever sobre a magia que envolveu o meu ser quando visitei pela primeira vez aquelas terras mágicas.
Escrever sobre Santo Antão é também escrever sobre o passado da minha família Jardim, é escrever sobre as histórias que a minha mãe me contava e acompanharam a minha meninice, as vindas da minha avó Anita a Portugal, os Natais em casa dos meus pais em que o Reverendo Mosteller e sua esposa Mrs. Gladys eram presença constante.
A “minha família Jardim” é mais do que uma família, são todas as famílias que trago no coração, todas as famílias de Santo Antão, todas as famílias de Cabo Verde.
Esta fotografia anseia por falar e “Na Esquina do Tempo” deu-lhe voz: Dezassete horas, desci até à porta da Escola Primária que confina com a propriedade da minha avó Anita, a Escola Ana de Anunciação Jardim.
Entrei.
Uma escola extremamente asseada, todas as salas com as portas abertas, os mais velhos terminam o dia com a aula de expressão plástica. Hoje podia estar em comunidade com todas as crianças de Lagedos, pois era dia de aulas.
A 25 de Março de 2003, dia em que a minha avó comemorou 84 anos, a Escola Primária de Lagedos recebeu o seu nome e toda a povoação, juntamente com um representante do Governo e vários professores, prestaram-lhe uma grande homenagem, tendo sido estipulado que todos os dias 25 do mês de Março seriam dias de grande festa em Lagedos.
Quando as crianças saíram da sala reinava a alegria. Todas sorriam para mim e, voando em nuvens de felicidade, com os olhos mais belos que alguma vez vi, dirigiram-se no meu sentido. As crianças respeitam o espaço dos seus semelhantes, não mendigam, nem tão pouco pedem. Sempre impecavelmente limpas e arranjadas. As meninas com os cabelos muito cuidados. A pobreza acaba por passar despercebida...
Lagedos é um Paraíso particular dentro do Paraíso de Santo Antão.
Logo que o carro cruza a fronteira marcada pela tabuleta “Lagedos”, cumprimentos e saudações constantes.
Sentar-me no muro, à porta de casa da avó. Contemplar a montanha, o céu, a casa de Djôn Júlio, receber as saudações dos carros, escassos, normalmente carrinhas de transporte colectivo, que passam na estrada.
A ausência de poluição permite que o som dos pássaros se propague mais facilmente e a variedade de cantares é tão grande que transporta qualquer ser para terras paradisíacas, terras ainda não profanadas pelas pegadas humanas, terras em que todas as aves se chamam Aves do Paraíso. Ao olhar para o céu contemplo o Gongon uma ave marinha que nidifica nos locais montanhosos, a Cagarra e muitas, muitíssimas, mais aves para serem veneradas.
Santo Antão permite que o passado, que tanto me fascina, fique para sempre eternizado...
... A chegada da minha tetravó Ludovina Quitéria Lima, vinda de Portugal, acompanhada por um irmão e escravos, incumbida de cumprir uma missão a mando do Rei de Portugal.
... A chegada, no século XIX, do meu trisavô António Leite Pereira Jardim, vindo de Coimbra, para exercer o cargo de Juíz de Direito na Comarca do Barlavento.
... O meu trisavô, António Luís Delgado, o “benemérito proprietário” como era conhecido, extremamente generoso com as populações da região, ajudando os flagelados pela fome e varíola, evitando contágios da doença através de importantes medidas preventivas e de saúde pública.
... O carácter interventivo de António Luís Delgado, presidente da Comissão de Assistência, que sempre defendeu os mais desfavorecidos. O seu papel crucial na crise de fome vivida em 1921.
... A intervenção, fulcral, de António Luís Delgado na construção da estrada para o Sul da região da Ribeira das Patas, o que levou a que fosse visitado pelo Governador e pelo General Viriato Gomes da Fonseca.
... As visitas frequentes de várias entidades oficiais e Governadores que, habitualmente, permaneciam na casa de Chã de Alecrim.
... A construção, por indicação e ajuda da minha família, de várias pontes e estradas com o consentimento do governo Português.
... O papel fundamental da minha família no desenvolvimento do sistema hidráulico e consequente distribuição de água, através da implusão de uma mina no Norte de Santo Antão....
A maçonaria...
... A personalidade forte e determinada do meu bisavô José Pereira Jardim, o qual muito contribuiu para o desenvolvimento das freguesias de São João Baptista e Santo André, na ilha de Santo Antão, com as suas intervenções junto do Governandor da Colónia de Cabo Verde.
... O grande amor de D. João José de Carvalho Daun e Lorena, filho do 5.º Marquês de Pombal, por minha avó Anita.
... O período de seca devastadora vivida durante a 2ª Grande Guerra, em que o povo enfrentou enormes dificuldades. A Família Jardim ajudou muitos dos que não tinham o que comer e, como tal, faziam as suas refeições nos anexos da nossa casa de Chã de Alecrim. A minha avó Anita, também para ajudar, e com o consentimento dos meus bisavós, em noites de lua nova, acompanhava os empregados que, montados em cavalos, se dirigiam para uma praia em que os submarinos alemães deixavam produtos alimentares. E isto sendo o meu bisavô um grande defensor de Churchill.
... Os verdadeiros tratados de ciência do meu trisavô António Luís Delgado, a rica biblioteca do meu bisavô José Pereira Jardim...
Santo Antão é mais do que o passado. É o Presente e o Futuro... que ainda serão História.
Cabo Verde Feiticeira
Rainha do Atlântico
Com teu jeito de brincadeira
Enfeitiças com teu cântico
Materialmente, podes ser pobre
Mas, espiritualmente, bem rica
Um povo sempre nobre
E um ar que purifica
Oh linda Feiticeira
No oceano plantada
Quem passa à tua beira
Por ti é encantada
Nota: Perdoem-me todos os que já adoptaram o novo Acordo Ortográfico mas, eu, como muitos, mantenho-me ainda fiel à escrita “antiga”.
“A intervenção, fulcral, de António Luís Delgado na construção da estrada para o Sul da região da Ribeira das Patas, o que levou a que fosse visitado pelo Governador e pelo General Viriato Gomes da Fonseca”.
Transcrevo esta passagem do interessante relato da Sónia Jardim apenas para fazer um comentário relativamente a Viriato Gomes da Fonseca. Este oficial fora colocado na colónia como Chefe dos Serviços de Agrimensura, o que corresponde a Obras Públicas. É isto que talvez explique, entre outras razões, como a amizade ou o conhecimento pessoal, a sua visita por ocasião da construção da estrada em S. Antão. Mas ele não era general na altura nem nunca esteve colocado em Cabo Verde como general, como algumas pessoas tendem a pensar. E nem podia acontecer, posto que o quadro orgânico da colónia quando muito previa o posto de coronel para o cargo de comandante militar da mesma.
Acontece que Viriato Gomes da Fonseca fez mais do que uma comissão em Cabo Verde, sua terra natal (S. Antão). Primeiro como tenente e colocado na Companhia de Artilharia de Guarnição S. Vicente), entre 1897 e 1901. Em 1903, já capitão, é novamente colocado em Cabo Verde, como comandante da referida companhia, permanecendo até 1907. Em 1915, já major, é colocado como chefe dos Serviços de Agrimensura, sendo promovido a tenente-coronel 2 anos depois. Promovido a coronel ainda no ano seguinte, regressa à Metrópole. Mas em 1921 regressa de novo à nossa terra para a mesma função, permanecendo por um período de 2 anos. Refira-se que mesmo nas anteriores funções militares, como capitão, desempenhou em acumulação cargos civis, nomeadamente na área das obras públicas (visitando mais de uma ilha) e mesmo como administrador interino em S. Vicente.
A partir de 1922, está na Metrópole e exerce actividade política, pertencendo a um partido e tendo sido um parlamentar de grande prestígio. Talvez isto explique que tenha passado à reserva em 1925, mas vindo a ser promovido a general em 1926, o que em circunstâncias normais não pode acontecer. Mas naqueles tempos conturbados da I República tudo era possível. Ou seja, é provável que por revanchismo político não tenha sido promovido a general quando lhe competia, só o tendo sido quando o seu partido regressou ao poder.
Este nosso conterrâneo foi um oficial de elevada craveira e um distinto cidadão.
Sónia, tudo o que mete S. Antão tem a virtude de me acicatar o ânimo da palavra, daí que me apetece prestar mais alguns esclarecimentos relativamente à sua última intervenção, que muito agradeço.
Primeiramente, sobre o general Viriato Gomes da Fonseca. Como eu saí de Cabo Verde muito novo, perdi a corrente normal dos testemunhos familiares (os verbais e directos), pelo que, acredite, só há cerca de 20 anos passei a saber da existência daquele militar nosso conterrâneo. Eu tinha então em Lisboa uma tia paterna que era tida como a fiel portadora da memória familiar mais antiga. Infelizmente, faleceu há 3 anos. Um dia, visitando-a, pedi-lhe para me transmitir o que sabia acerca dos nossos antepassados mais remotos. De boa vontade, ela satisfez toda a minha curiosidade. Ao falar-me da família do lado paterno, explicou-me as origens dos seus avós (Ana Francisca Costa de Oliveira Lima e Manuel António Lima) e suas vivências em S. Antão, de onde eram naturais. A dado passo, contou que ambos os avós (que por sinal eram primos entre si) recebiam com frequência a visita do “general” Viriato Gomes da Fonseca, também primo de ambos, e que, para além dos laços de parentesco, o “general” tinha uma afeição especial pela Ana. Mais contou que, como o “general” era um exímio tocador de instrumentos de corda, faziam uns bailes e ele se regalava em ser o par dançarino da Ana (não sei se com ciúmes do marido), dizendo-lhe que “ela dançava como um passarinho a voar”. Não é por eu ser bisneto, mas a verdade é que a Ana era uma mulher bem bonita, como, aliás, o comprova uma foto muito antiga em meu poder.
A linha genealógica diz que, de facto, havia um laço de parentesco entre o “general” e os meus bisavós. O meu bisavô era neto de Martinho de Lima e Melo e de Aniceta Gomes da Fonseca, enquanto a descendência da bisavó Ana entroncava igualmente num ramo ligado àqueles meus remotos parentes. Ora, o “general”, filho de Manuel Gomes da Fonseca, era, por conseguinte, descendente da família de Aniceta Gomes da Fonseca. Daí, a “primagem” entre eles, e o facto é que, como me disse a minha tia, eles tratavam-se por primos.
(Continua)
Então, perante o que eu ouvi da tia, exclamei: “Oh, pensava eu que era o único militar no historial da família e afinal até houve um parente que foi general. Mas a questão do posto do militar ficou-me atravessada porque não entendia como uma colónia como Cabo Verde pudesse ter um general no quadro orgânico das suas forças militares. E esbocei a dúvida porque, como sou militar, percebo destas coisas, por dever de ofício.
E foi assim que não tardei a pesquisar sobre o percurso militar de Viriato Gomes da Fonseca, tendo obtido no Arquivo Geral do Exército os dados que eu referi no meu comentário anterior.
De facto, ele nunca serviu como general em Cabo Verde. Quando atingiu esse posto, e já na reserva, tinham-se passado 8 anos desde o seu último serviço em Cabo Verde, que foi nos postos de major e tenente-coronel.
Mas compreende-se que quando as pessoas se referem a ele o tratem naturalmente pela patente que viria a ter mais tarde. É o que fez o seu trisavô e a minha tia.
Sobre "Lagedos", como já referi, ouvi pela primeira vez falar do nome quando, em 1953,o meu pai foi lá vender uma propriedade do seu pai (meu avô), herança da sua mãe, a referida Ana Francisca Costa de Oliveira Lima. Esse meu avô foi filho único e herdou várias propriedades em S. Antão, tanto do lado do pai como da mãe. Em Ribeira Grande, Longueira, Paul e "Lagedos". O meu avô nunca trabalhou e viveu dos rendimentos das terras que sucessivamente ia vendendo. Nada sobrou para os filhos e muito menos para os netos. Lembro-me bem do ar pesaroso com que regressou o meu pai, lamentando a venda da propriedade de "Lagedos", dizendo que era linda e tinha muita água. É caso para perguntar se ela não terá sido comprada pela família Jardim. Mas o meu pai veio dessa viagem a "Lagedos" com uma valente carga de manga, banana, papaia e produtos da terra.
(Continua)
(Conclusão do meu comentário)
Acerca da palavra “Lagedos”, confesso que não tive intenção de insinuar qualquer correcção. Seria o que faltava. Só que o normal seria “Lajedos”, palavra derivada da primitiva laje com o sufixo edos, como me explicaria o meu saudoso professor Ti Fefa (Alfredo Brito). Daí a dúvida que me surgiu.
Mas a verdade é que toponimicamente o que se escreve em Cabo Verde é “Lagedos”, como explicou a Sónia. Admito que antigamente a palavra primitiva possa ter sido “lage”, a qual terá assim evoluído, à semelhança de outras. Sucede, porém, que a evolução ortográfica normalmente não interfere com as designações toponímicas, que se consagram com o tempo, sendo muitos os casos que o podem comprovar, sobretudo em Portugal. Agradeço à Sónia o esclarecimento que deu sobre o caso.
Ah, também afirmo que, a caminhar para os 68 anos, não é agora que vou mudar de vida e cumprir o Acordo Ortográfico, com o qual, aliás, estou em total discordância. Continuarei a escrever à antiga e quem quiser que corrija.
Para concluir, agradeço à Sónia e ao seu livro a oportunidade que me deu de falar sobre a minha querida ilha de S. Antão e o passado. Onde poderei adquirir o seu livro?
Com muito prazer li a sua interessante explanação.
O passado fascina-me e é um privilégio poder partilhar vivências, pelo que a história da sua família também prendeu a minha atenção.
“Ela dançava como um passarinho a voar”... envolvente.
A história de Cabo Verde tem, efectivamente, o núcleo na história das suas famílias e isso constitui um património imensurável.
Relativamente aos terrenos da minha família, os mesmos já nos pertencem desde, pelo menos, tempo da minha tetravó, tendo sido o meu trisavô António Luís Delgado um grande proprietário em Santo Antão. Lagedos, Monte Trigo, Ribeira das Patas eram praticamente sua pertença. Tinha ainda terras na Ribeira Grande e Paúl.
Tenho conhecimento que o meu trisavô era amigo da família Lima e Melo.
No que concerne ao livro “Família Jardim – O Segredo”, o mesmo pode ser adquirido, em Lisboa, na Livraria Apolo 70 (Centro Comercial Apolo 70 junto ao Campo Pequeno), na Associação Caboverdiana (Rua Duque de Palmela), no Centro Cultural de Mindelo, em São Vicente, na Livraria da Biblioteca Nacional na Praia, entre outros.
Já agora, porventura, o Adriano não será da família de Augusto, João e Anita Miranda que tinham casa na Rua de Coco em Mindelo que eram amigos da minha família?
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
Um belíssimo texto este da senhora Sónia Jardim. T...
Interessante que isto me lembra um estória de quel...
Muito obrigado, m descobri hoje e m aprende txeu!!...
Não conhecia a família Jardim, de S. Antão, mais propriamente de Lagedos (ou Lajedos?). O curioso é que o meu avô paterno, natural da Ribeira da Torre, tinha, por herança, uma propriedade agrícola em Lajedos, que foi vendida em 1953, tendo o meu pai ido lá acertar a transacção.
O texto da Sónia é carregado de poesia e é também um interessante testemunho familiar. Registo, com grande interesse, o episódio que ela refere sobre os submarinos alemães que descarregavam alimentos numa praia. Isto demonstra como é realmente complexa, e por vezes insondável, a natureza humana. Os mesmos submarinos que, obedecendo a ordens superiores, ceifavam vidas humanas no Atlântico, tentavam aliviar a fome de criaturas desconhecidas que habitavam uma ignota ilha no mesmo oceano.
Esperemos que a Sónia pareça mais vezes neste Blogue e nos fale de S. Antão.