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Numa Esquina Outra

Brito-Semedo, 19 Out 11

 

Fátima Bettencourt, Praia

 

As “Esquinas de Diazá” do meu amigo Brito-Semedo trazem-me sempre à memória outras esquinas, não sei se mais ou menos antigas, porém igualmente gostosas, mormente quando lidas por amigos na terra longe e de que dificilmente nos lembraríamos.

 

Hoje por exemplo, me lembrei dos dias da rádio. Benditas esquinas onde apoiando um cotovelo é possível viajar no tempo, o que já não acontece em Brasília onde não há uma esquina para encostar um cotovelo como bem observou Osvaldo Osório.

 

Há uma data de anos atrás, findos os estudos, regressei a S. Vicente e a minha pronúncia lisboeta foi considerada adequada para a locução na Rádio Barlavento apesar de que na gozada opinião do Dr. Baltasar, isso não passasse de um gôgo na goela que eu deveria curar com leite e alho à semelhança das galinhas dos nossos terreiros. A despeito do douto parecer, senti-me o máximo quando recebi o convite para fazer uns testes logo aprovados e comecei, com o coração na boca, a titubear os primeiros avisos e discos pedidos.

 

Dirigentes, produtores, locutores e músicos da Rádio Barlavento. Foto Melo, finais anos 50.

Foto tirada no quintal do Grémio Recreativo. Cedida por Ernestina Santos

 

Legenda (Da esquerda para a direita): 1a. fila – Lulú Marques, Ângelo Lima (músico), Sr. Pias (técnico), António Salomão, Telmo Vieira (técnico-músico), Francisco St. Aubyn, Carlos Caldeira Marques (locutor), Lehman d’Almeida (produtor-locutor), Mangas de Oliveira, Luís Matos, Augusto Santos, Mário Ivo, Arnaldo Gonçalves (músico);
2a. fila – Hermes Lima (músico), Sr. Mendo (dirigente), Dr. José Fonseca (dirigente), Dra. Armanda Fonseca (locutora), Dr. Aníbal Lopes da Silva (dirigente), Sr. Albuquerque, Jorge Barbosa (poeta-colaborador) e Jorge Pedro Barbosa (compositor-colaborador).

 

Naqueles tempos primitivos de técnicas rudimentares, eu ficava praticamente sozinha no estúdio, uma salinha velha e esburacada anexa ao Grémio, mais um acampamento de ratos do que outra coisa. Mexia naqueles botõezinhos todos, de vez em quando deixava o micro aberto e era um deus nos acuda quando saía alguma frase em crioulo, muito mal visto nas “Altas Esferas” como comentavam os senhores da época. Eu não entendia muito bem que esferas eram aquelas e um dia não resisti e perguntei. A resposta veio logo solene e reprovadora: “Ora, o Almirantado, o Comando Militar e o próprio Grémio, paredes meias mas tão distante.

 

No nosso desempenho enquanto locutores éramos suportados por um técnico que apanhava as notícias na BBC, Voz da América e outras fontes por métodos tão pré-históricos que um dia, desesperado por não poder sacar nenhum sentido à profusão de sons que lhe chegavam, escreveu parte da notícia e acrescentou uma série de exclamações, reticências e interrogações, rematando com um toque de ficção científica: “!!! ... ??? ... !!! ruídos de monstros feridos!”. Este desabafo acabou por gerar grande confusão no estúdio, levantando-se em alguns mais brincalhões a terrível suspeita de que estávamos tendo contactos extra-terrestres.

 

Guardo até hoje na lembrança alguns colegas da época: Tuta Azevedo, Cuda, Calu Gonçalves, Djosa Sena. Este era sempre rigoroso no relatório da emissão, uma exigência da Direcção, que devia ser registado diariamente em livro próprio, mas que ninguém ligava excepto o Djosa. Num dia qualquer em que tinha uma festa, pedi-lhe que me substituísse e no dia seguinte lá estava o sucinto e engraçadíssimo relatório: “Fiz o serviço”. O azar maior era cair na escala a noite de Natal ou S. Silvestre. Todos fugíamos disso como o diabo da cruz, mas a alguém havia de calhar aquela estopada de ler 500 pedidos para um só disco e repetir a interminável lengalenga pela noite a dentro que, para o cúmulo, se distinguia com um período de emissão mais longo, perdido para sempre no éter, pois Mindelo estourando em bailes e foguetes não tinha tempo para ouvir rádio.

 

Pior que isso era quando o ajudante de estúdio resolvia colocar na recta final da emissão uma bobine de música da terra com interpretações de vários artistas que terminava num solo de violão do Caraca, necessáriamente interrompido para fechar a emissão. Era certo e sabido que na Praça encontraria o dito Caraca a esbracejar furioso, quase chegando a vias de facto e reclamando na sua voz roufenha: “Bô cortál paquê era mim! S’era Humbertóna inda el táva lá ta tocá”.

 

Apesar da hierarquia fascizante da época, todos guardamos recordações agradáveis de chefes como Aníbal Lopes da Silva ou Telmo Vieira (na foto, o 5.º em pé, a contar da esquerda) que fazia da rádio um sacerdócio. Balançou porém no dia em que por lapso das nossas fontes, sempre perturbadas pelos monstros feridos, anunciamos a morte de um conterrâneo muito prestigiado e acabamos verificando tratar-se dum equívoco, o sujeito estava não só vivo como gozando de excelente saúde em Lisboa. E agora que fazemos? Perguntei ao amigo e chefe. Ele pesando a gafe monumental, decidiu: “Vamos passar um comunicado dizendo que lamentamos o ocorrido.” Pois é, retruquei, e se a família agora pensar que estamos lamentando que a notícia não tivesse sido verdadeira? Acabamos todos numa sonora gargalhada com o Sr. Telmo já de caneta em punho redigindo uma explicação que não desse lugar a quaisquer equívocos.

 

Até hoje a minha ligação à rádio mantém-se como um laço indissolúvel, algo muito gratificante que me acompanhou pela vida fora como uma segunda profissão, lá onde as emissões se faziam com o coração, o instinto e pouco mais.

  _______

 

Fátima Bettencourt, natural de Porto Novo, Ilha de Santo Antão, Cabo Verde. Diplomada e Magistério Primário, estagiou em Comunicação Educacional na Universidade Nova de Lisboa e na Escola Superior de Educação de Setúbal (Portugal). Foi professora do Ensino Primário em Portugal, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Angola, e professora do Ensino Preparatório em Cabo Verde.

 

Desempenhou, entre outros cargos, o de directora do Departamento de Informação e

Relações Exteriores da Organização das Mulheres de Cabo Verde (OMCV) e o de técnica de produção radiofónica na Rádio Educativa (Cabo Verde).

 

Contista e cronista, Fátima Bettencourt é Prémio Eugénio Tavares da Crónica Jornalística 2005, atribuído pela Associação de Escritores Caboverdianos.

 

Tem colaborações dispersas por periódicos nacionais e estrangeiros e os seus trabalhos figuram também em manuais pedagógicos. Reside na Cidade da Praia.

 

 

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4 comentários

De Amendes a 19.10.2011 às 20:06

Que mal lhe pergunte: - A receita do Nhô Balta  resoltou?

Não haverá hipótese de identificar os personagens da foto?

Muitas felicidades.

De Brito-Semedo a 19.10.2011 às 21:46

Caríssimo, Quero crer que a receita do Nhô Báltas resultou, Rsss !!! Quanto à legenda da foto, como esta já tinha sido tema de um post, achei que a podia dispensar. Contudo, não custou nada responder ao seu pedido e... já lá está! Um abraço!

De Ricardo Riso a 21.10.2011 às 16:29

A prosa de Fátima Bettencourt é sempre fascinante e, como bem frisou, esta esquina remete a outras esquinas memória. Ótima essa recordação, "apesar da hierarquia fascizante da época", é bom ter um testemunho de como se davam as relações sociais durante esse período.
Fiquei muito feliz ao ler este texto!
Abraços!!

De Adriano Miranda Lima a 21.10.2011 às 21:50

Foi emocionante ler esta memória da nossa Rádio Barlavento e rever rostos de pessoas conhecidas ou de que ouvia falar, cujo empenho e carolice nos permitiram momentos inesquecíveis de recreação e informação. Um texto bem escrito e que certamente cai no goto de todos os mindelenses. Obrigado à autora e os meus parabéns.

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