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Igreja do Nazareno CV - Parte II

Brito-Semedo, 9 Nov 12

 

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Igreja do Nazareno da Achada de Santro António, Praia

 

 

II – A IGREJA DO NAZARENO, UMA VISÃO HISTÓRICA

 

Tomando como parâmetro a cultura nacional e adoptando uma visão diacrónica (ou seja, através do tempo), considero existir, na História da Igreja do Nazareno de Cabo Verde, três períodos marcantes: (1) o dos Pioneiros (1901-1956); (2) o dos Missionários (1936-1991) e (3) o dos Nacionais (1991-até hoje).

 

1. O Período dos Pioneiros (1901-1956)

 

A Igreja do Nazareno, fundada por “filhos da terra” sob a liderança do Rev. João José Dias (1873-1964), natural da ilha Brava, enraizou-se progressivamente na realidade das ilhas. Nas actividades desta Igreja, foi valorizada a língua da terra em detrimento da língua oficial, mesmo porque a escolaridade em Português de João José Dias e da maior parte dos crentes era fraca. Foi assim que se deu início à experiência da tradução da Bíblia para o crioulo e se publicou, com o apoio da Sociedade Bíblica da Escócia, Pàdás de Scrituras na Criôlo de Djà Braba (1936), uma tradução do Salmo 23, Eclesiásticos 7, Evangelho Segundo São João 3 e 4 e Apocalipse 1:1-6.

 

Outra experiência digna de nota foi a adopção de ritmos da terra nos cantos religiosos, quer da autoria de Eugénio Tavares, como “Para o Céu” e "Ergo os Olhos", em 1920,  quer de João José Nunes, “Entrai irmãos” e  “O Céu em Luz Fulgindo”. Todos esses hinos são ainda hoje tocados e cantados nas igrejas dos E.U.A. pelos crentes da emigração cabo-verdiana.

 

Neste período, a religião católica estava implantada e era reconhecida pelo Estado Português como a Igreja oficial. Por isso, a introdução de uma igreja protestante em Cabo Verde veio desestabilizar o status quo e provocar uma reacção social e política sobre ela. Em resposta, a Igreja de Ponta Achada, ou do Nhô Djon Dias, reagiu ousadamente, confrontando e desafiando os seus opositores, defendendo a sua existência. Esta luta resultou em perseguições e agressões físicas e morais, destacando-se os pastores pioneiros António Gomes de Jesus, Ilídio Santa Rita Silva, Francisco Xavier Ferreira, Luciano Gomes de Barros, José Neves Caldeira Marques, José Maria Correia e Álvaro Barbosa Andrade.

 

2. O Período dos Missionários (1936-1991)

 

1. Em 1936, chegou a Cabo Verde o primeiro missionário americano, o Rev. Everet Howard, que rompeu com as experiências e as práticas introduzidas pelo Rev. João José Dias. Isto terá estado na origem, em S. Vicente, de uma cisão, que resultou no surgimento da Igreja de Manuel Ramos, de denominação Baptista.

 

A mesma linha de actuação foi seguida pelos missionários subsequentes – Rev. Samuel Clifford e Charlotte Gay, em 1939; Rev. Earl e Gladys Mosteller, em 1946; Rev. Ernest e Jessie Eades, em 1948; Enfermeira Lydia Wilke, em 1949; Rev. J. Elton e Margaret Wood, em 1953; Rev. Roy Malcolm e Glória Henck, em 1958; Rev. Paul e Nettie Stroud, em 1969; Rev. Duane e Lidia Srader, em 1973; e Rev. Philippe e Paula Troutman, em 1991.

 

Fica, portanto, patente que houve um corte com o período pioneiro e, por consequência, o papel e a importância da obra do Rev. João José Dias foram votados ao esquecimento.

 

2. A cultura geral da Igreja do Nazareno, baseada na Bíblia e sistematizada no seu Manual, trazida pelos missionários americanos e europeus, “impôs” um determinado tipo de culto e de regras fixas, mas desligou-se da realidade social e política, ignorando-a, também como estratégia de sobrevivência, não só enquanto estrangeiros, mas também face à igreja maioritária e ao regime político vigente em Cabo Verde.

 

Neste período, a Igreja modernizou-se, estabeleceu-se nos meios urbanos e elitizou-se, seguindo o modelo de proveniência de cada missionário, ou seja, dos E.U.A. e do Reino Unido, o que, para além de tudo o mais, era patente nos trajes de fato e gravata, apesar do clima quente.

 

Pode, pois, classificar-se este período como de adequação ou acomodação à situação política vigente ou do politicamente correcto.

 

Considero que o final deste período, a partir de 1975,  é já uma fase de transição para o período seguinte, em que a Igreja do Nazareno em Cabo Verde passa a usufruir do estatuto de Distrito-Missão, com a nomeação de um Superintendente Distrital cabo-verdiano e de um missionário americano como Director do Campo, até chegar à situação actual de Distrito Regular, de plena autonomia, sem a tutela de missionários. Mas isto é já o período seguinte.

 

3. O Período dos Nacionais (1991-até hoje)

 

Ao reinventar as suas tradições e ao enraizar-se de novo na cultura e na sociedade cabo-verdianas, abrindo-se e apropriando-se de outras tradições, a Igreja do Nazareno de Cabo Verde parece estar agora, setenta e cinco anos depois, a querer “voltar à fonte”, ou seja, à sua fase pioneira.

 

A Igreja do Nazareno de hoje dá sinais de estar a renascer para a realidade cultural  e social do País. Refiro-me, por exemplo, à retoma da experiência de tradução da Bíblia para o crioulo, com Lúkas – Notísia Sabi di Jisuz, em 2004; à dobragem de um filme sobre Jesus, nas variantes de Santiago, em 2010, e de S. Vicente, em 2011; aos ritmos musicais adoptados no culto (morna, coladeira, funaná e batuque) como suporte das letras dos coros cantados na Igreja. De referir, ainda, a influência da música gospel americana e da bossa nova brasileira nos cânticos.

 

Considero este período como um regresso aos primórdios. Existem, contudo, aspectos a salvaguardar na expressão da identidade desta Igreja, que não devem ser negociados, sob o perigo dela perder a sua matriz inicial identitária e a sua razão de ser: os valores bíblicos, a cultura da organização, a inserção na sociedade com a dualidade étnica e cultural, o convívio entre a tradição e a modernidade, apenas para referir alguns.

 

Há uma longa caminhada a efectuar, mas é andando que se faz o caminho.

 

(Continua)

 

Manuel Brito-Semedo

Praia, 8 de Novembro de 2012

 

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1 comentário

De Valdemar Pereira a 10.11.2012 às 12:55

Quando criança, nos anos 42/43, frequentei a Igreja Baptista (pastor Manuel Ramos, na Rua Senador Vera Cruz) que abandonei devido um incidente com o pastor e, mais tarde, mesmo não sendo de confissão protestante, ia sempre que possivel à Igreja do Nazareno (mesma rua) para ouvir as boas palavras do Sr. Mosteler e os hinos entoados por outro Pastor, de cujo nome não me lembro, por nôs designado de Bing Crosby, tão bela era a sua voz.
Muitos anos depois havia de encontrar, casualmente, o simpàtico Sr. Mosteler numa rua em Lisboa e, instintivamente, lhe dirigi como se tivesse sido um amigo. Conversamos e relembramos alguns nomes da época.
Por mim, os Missionàrios americanos deixaram Obra e agradeço ao Amigo Brito Semedo pelo trabalho que nos apresenta.

 

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