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Esquina do tempo por Brito-Semedo © 2010 - 2015 ♦ Design de Teresa Alves
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Magazine Cultural a divulgar Cabo Verde desde 2010
Brito-Semedo, 22 Out 13
A cronista e colaboradora da Esquina do Tempo, Suzana Abreu*, acaba de publicar Crónicas à 6.ª. Cinco dessas crónicas aconteceram em Cabo Verde, repartidas entre as suas duas últimas visitas à terra onde viveu. Em jeito de apresentação do livro, fica aqui a crónica da página 70, "Nhô Pina, Velho marinheiro encalhado".
"Como é terrível saber, quando o saber de nada serve a quem o possui."
in Édipo Rei, Sófocles
Salamansa, velha memória de uma praia da infância.
Salamansa, onde as montanhas majestosas de Santo Antão emergem como fantasmas por detrás das rochas nos dias de bruma seca, os recortes semi-apagados pelo pó e areia fina que o vento traz do deserto do Saara.
Praia de nortada, com ondulação frequente, águas de um azul forte, areia branca. Para trás, muito ao longe, ficava o casario, aldeia pobre de pescadores que nunca se deixavam ver. Apenas as crianças, muitas, em grandes grupos, magras e despidas, que surgiam do nada para pedir comida e umas moedas, agarrando-se, rindo e trepando pelas cordas dos pequenos botes de borracha com que a miudagem da minha idade costumava cavalgar as ondas.
Muitas vezes, ao domingo, saíamos de casa cedo, já com o sol a ficar inclemente, com uma saca cheia de sandes e bolachas para um picnic repartido, que nunca era suficiente, cada vez mais crianças surgiam misteriosamente por detrás das dunas.
Estas são as memórias que preservei de um lugar e de um tempo já muito distantes.
Passou uma vida e uma geração.
Voltei a Salamansa há três dias apenas. Regressei ali com um jovem padre cabo-vediano e duas sacas de roupa e calçado dentro de uma pic-up. Pelo caminho, inúmeras paragens para dar boleia a velhos, novos e crianças regressando da escola ao longo daquela estrada seca e esburacada, de paralelipípedos gastos, aqui e ali ladeada por acácias raquíticas torcidas pelo vento.
Dividimos o espaço no habitáculo como pudemos, a guitarra a assentar em vários colos, os sacos a estorvar.
Quando já não havia mais lugares, a parte de trás, de caixa aberta, foi ocupada pelo caminho.
Chegámos. A igreja mais parecia uma ermida no cimo de uma duna alta sobre o mar, azul intenso como o lembro, mar ora calmo ou encapelado e em fúria, de respeito e receio nos dias de tempestade, mar caminho de "sodade" no imaginário da terra longe.
Demorei-me cá fora, enquanto as gentes de Salamansa entravam na igreja, arredias com estranhos, hoje como outrora.
Imutável, a beleza das dunas brancas em constante movimento, delimitadas por paredes imponentes de rocha negra vulcânica.
O casario, agora bem mais extenso, num extremo colorido pelas casas dos emigrantes regressados da Holanda e do outro, um enorme amontoado cinzento, disforme, feito de casas semi-eregidas, paredes de tijolos de cimento por pintar, vigas e ferros espetados para o céu a aguardar dias melhores e mais dinheiro, telhados improvisados, janelas tapadas com plásticos, portas e muros de chapa enferrujada da maresia.
Alguns casebres, mais afastados, espalhavam-se desordenados pelas dunas e rochas, por vezes assentes em concheiros milenares, a recordar-nos a idade da Terra. Diferentes, mas de uma extrema pobreza, como dantes.
Entrei na igreja e entreguei os sacos, sendo parca nas palavras porque os rostos estavam fechados. Sentei-me num banco corrido, onde fiquei sózinha. Somente mais tarde a velhinha que tinha apanhado boleia connosco se me juntou, com um sorriso. A missa foi breve, de palavras certas, adequadas, acompanhada de cânticos com um ligeiro toque dos ritmos locais.
Saí, pensando que a tarefa estava terminada e a missão cumprida, sem ter conseguido falar sequer com uma pessoa.
No adro minúsculo, o Padre Lino tira então a guitarra azul eléctrico da carrinha e sugere que se leve umas palavras de conforto ao senhor Pina. Formou-se um grupo de voluntários, novos e velhos e quando estavam prestes a partir, perguntaram-me se também ia.
Surpreendida pelo convite, acenei e pusemo-nos a caminho em silêncio, embrenhando-nos no labirinto dos caminhos feitos de pedras, areia, pedaços e restolho de coisas partidas, caminhos íngremes que encaracolavam por entre aquelas casas inacabadas, cenário de uma guerra que nunca existiu, de onde o vento trazia por vezes um cheiro nauseabundo.
No fim de uma pequena colina feita de areia amalgamada com pedaços de conchas e coral partido, estava a casa do Sr. Pina, um quadrado de blocos de cimento cinzento assente em estacas altas de betão na parte de trás, amparada à colina na frente , para onde se entrava através de uma espécie de pequena ponte inacabada. Uma porta de madeira podre aberta na frente, duas janela atrás. No final, um salto ou pernas seguras para não falhar e cair no pedaço que faltava construir.
O chão da casa estava forrado com camadas sucessivas de pedaços de linóleo, figuras geométricas interrompidas, cores desbotadas. As paredes, caiadas de branco. A casa estava limpa, no ar um odor a desinfectante forte que não consegue tapar a pobreza.
À esquerda, uma divisão rectangular minúscula com uma janela e apenas uma garrafa de água no chão, à direita, o exíguo quarto do Nhô Pina. Um catre de campanha militar, coberto por uma colcha branca e limpa, um garrafão cheio de lixívia à cabeceira, junto à janela, um bacio encarniçado aos pés. Eram estas as posses do velho pescador cego. Não havia nem água nem luz, nem saneamento básico.
Sentado em cima da cama, encostado à parede, com parte das pernas penduradas e tentanto não descair, Nhô Pina endireitava-se, ar digno e solene de anfitrião de visitas de grupo. Vestindo um blazer claro de cor indefinida muitos tamanhos acima do seu, sem camisa e com umas calças curtas e largas de sarja azul escura que lhe deixavam à mostra as pernas secas, com cicatrizes redondas e escuras, Nhô Pina ofereceu-nos um largo sorriso de boas-vindas.
Desconcertante, aquele quadro de um homem muito velho, marinheiro de pele negra crestada pelo mar, despojado dos bens mais elementares, fustigado pela vida, hirto no seu fato coçado XL, a rir-se com três dentes, o cabelo rapado e barba feita, olhos deformados, muito azuis, como se a íris e a pupila tivessem explodido e fundido-se de novo e, no entanto, resignado, deferente e honrado com a atenção recebida.
O grupo sentou-se no chão, arrumando-se no pouco espaço, falando crioulo, entoando canções e rindo, puxando pelo ânimo do Nhô Pina. Acerquei-me dele, fiz-lhe uma festa do rosto e na cabeça, sem saber o que dizer e ele pegou-me na mão e perguntou quem era. Não consegui dizer nada, de olhos turvos, imaginando que aquele velho muito velho tinha sido um dia um homem válido e robusto, um dos pescadores da aldeia que aos domingos não se acercavam da praia, alguém que eu nunca vi no esplendor da vida, conhecendo agora apenas uma ténue sombra do que foi. E com tanta dignidade.
Ali fiquei em pé, parada, emudecida, com as minhas mãos nas dele, sem saber o que fazer ou dizer.
Apareceu então uma cadeira, não sei de onde, para que me pudesse sentar. Os presentes rezaram, a velhinha que se tinha sentado no mesmo banco na igreja passou-me em silêncio um rosário cor de rosa para as mãos.
Pediram-me então para ler um passo dos Evangelhos. Levantei-me e li alto, a voz sem hesitar, mas feita em pedaços, reduzida a pó, figurante repentina de um lugar e uma circunstância improváveis, rodeada de gente extremamente pobre mas solidária que, vencida a resistência inicial, me deixou participar.
"Oh", murmura então o Nhô Pina, depois de eu terminar a leitura,"é uma senhora portuguesa... eu sou cabo-verdiano e também sou português!..." Acto contíguo, pede à sobrinha, único familiar que ainda lhe resta e que trata dele todos os dias, que lhe fosse buscar o bilhete de identidade.
No entretanto, com uma voz suave e calma, com os olhos cegos correndo as paredes, na minha cabeça, ou talvez não, surgem histórias do mar, aventuras da pesca artesanal numa casca de noz dali até à ilha de Santa Luzia, o mar que fervilhava em peixe, as muitas espécies que havia, as lutas implacáveis pela sobrevivência, os tubarões que lhe roubavam o sustento, os sustos no mar em dias de tempestade, os segredos dos ventos, das correntes, das estrelas e das luas, dias da fome e dias de um pouco de abundância.
Chega o bilhete de identidade, que passa de mão em mão.... o Nhô Pina que aparenta ser centenário, afinal nasceu em 1942, ainda vai fazer setenta e um anos a 30 de Maio, ele teima que é em 30 de Abril; foi registado fora do prazo legal, com uma data de nascimento posterior, para evitar a multa.
Olhando em silêncio para o Nhô Pina, escutando como fala calmamente enquanto os olhos nos percorrem ao acaso, imagino que reincarnaria Tirésias na perfeição, o profeta cego da mitologia grega, que foi homem e mulher, que sentiu e viveu como ambos, que sobreviveu a várias gerações, acumulando saber e conhecimento.
Mas o bilhete de identidade português há muito expirado, mostra-me contudo que Nhô Pina, cidadão caducado de uma pátria administrativa que morreu em 1974, é também um clandestino da pátria nascida em 1975, sem acesso a cuidados de saúde nem a previdência, um velho cego e doente que entende os ventos , que sabe quando é dia porque os raios de sol lhe aquecem os braços, que escuta o mar no silêncio de todas as noites dos seus dias.
Um pobre velho quebrado e doce, outrora valente marinheiro, sobrevivendo agora a custo, doente e cego, sem sair de casa, numa comunidade extremamente pobre que não o desamparou.
Nhô Pina, velho marinheiro de muitas tempestades e privações encalhado no alto de uma colina, que me tomou a mão com doçura.
Impossível esquecê-lo, tão-pouco o país onde nasceu.
S.Vicente, Abril de 2013
Título: Crónicas à 6.ª
Autora: Suzana Abreu
Edição: Setembro de 2013
Editora: Editorial Minerva
* Suzana Abreu é, juntamente com Luís António Martins de Faria, autora do livro Cabo Verde, Terra de Morabeza (2012).
Um retrato fiel, ‘sans
complaisance’ de um Cabo Verde ou melhor do S. Vicente contemporâneo, não o
Cabo Verde da festa e do passa mas sim da dura realidade da interioridade
litoral desta Salamança este sítio paradisíaco situado nos confins de um mundo
cabo-verdiano. A realidade cabo-verdiana continua dura e não há ainda agenda que a consiga
transformá-la não obstante as 'bazofarias' sucessivas dos muitos que nos
governaram. Este Nho Pina representa o Cabo Verde de oportunidades perdidas de
promessas nunca concretizadas de futuros
radiantes.
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
D. Isabel Delgado da Silva, infelizmente não tenho...
Boa noite Jailson, não tinha conhecimento de que m...
Hola! Gracias por la información sobre nuestro árb...
Eis um retrato pintado com um realismo que, no entanto, roça o surrealismo pela forma como o olhar se combina com o espírito numa abstracção que atinge os umbrais do irreal libertando o inconsciente (da autora e do leitor). A condição humana é a única e verdadeira fonte inspiradora dos melhores planos de expressão da consciência, e nada como o ser reduzido à indigência mais pura para nos colocar impiedosamente perante o drama da existência.
Enquanto vivi em S. Vicente nunca tive oportunidade de ir a Salamansa, sabe-se lá porquê se o lugar estava apenas a poucos quilómetros de distância. Só visitei Salamansa quando regressei, muitos anos depois, e o que vi corresponde aos traços que a autora aqui nos coloca com grande eficácia. Lembro-me de que a minha mulher teve este desabafo: há aqui uma praia bonita mas este lugar é triste. É verdade, tive o mesmo sentimento. Ontem como hoje, persiste uma certa paisagem humana de abandono, desamparo e solidão, em Cabo Verde. Uma ou outra casa de construção mais ambiciosa que hoje se vê em Salamansa não anula a imagem de pobreza e fealdade que ali perdura, antes parece avivá-la ante a evidência da falta de um meio-termo que deveria em si mesmo congregar a expressão de uma qualquer nota pitoresca.
Mas tudo se compromete com a falta de um plano oficial para valorizar certas localidades da nossa terra, ao menos para atracção turística. Ao invés, consente-se a construção sem regra, ao gosto de cada um, sem respeito por uma ideia colectiva, e as casas semiconstruídas, em reboco, como também reparou a autora, espelham um percurso dramaticamente suspenso entre o anseio e a realidade.
Nhô Pina, o “centenário” de 71 anos, pouco mais velho que eu, é o personagem que melhor exemplifica e amplifica o significado de todo o desamparo e solidão da paisagem humana de Salamansa. Mas, felizmente, não é bem assim, ele conta com a solidariedade que é genuinamente nossa, a das pessoas singulares, dos vizinhos, afinal o traço mais sensível da nossa humanidade. De facto, isto é mesmo património nosso.
Pois, tudo isto é a nossa terra tal como ela é e não com as cores com que às vezes procuramos imaginá-la, quem sabe se para a redenção de uma qualquer culpa que não temos.
Isto tudo para concluir que a Suzana Abreu viu a realidade com olhos de ver, captou-a com toda a sua sensibilidade humana e dá-lhe notável expressão literária.
Obrigado, Suzana Abreu.
Adriano Miranda Lima