Recomendações de consulta
Assuntos culturais
Bibliotecas Virtuais
Blogues Parceiros
Documentários
Instituições Ensino Superior
Para mais consulta
Esquina do tempo por Brito-Semedo © 2010 - 2015 ♦ Design de Teresa Alves
Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Brito-Semedo, 28 Mar 10
Foto de Gerson Brito-Semedo, 2005
É isto apenas um golpe de vista sobre o perfil intelectual do infortunado Dantas, que a morte acaba de arrebatar, tão cedo para todos, menos para ele, que havia já muito a esperava resignado, indo quase ao seu encontro.
Padecimentos físicos, a terrível lesão cardíaca que ele reconhecera em si, impressões morais que no seu temperamento nervoso actuavam com a máxima intensidade, decepções sucessivas, repelões da sorte, e também um ansiar indómito que nunca era satisfeito, ou preenchido, tudo concorria para esse mal-estar geral que lhe entenebrecia os dias, e o arrojava ao pendor onde a tentação das bebidas brancas enroscando-se-lhe na razão e no ânimo, e fascinando-o, lhe dominava a vontade, eis o que lhe aproximou o termo da existência.
O seu falecimento deve necessariamente produzir na sociedade cabo-verdiana uma comoção penosíssima. Filho da província nascido na ridente ilha Brava honrava pelo talento o seu país; era uma glória literária da província inteira, que rebrilhara tanto para sumir-se tão de súbito, e para sempre!
Foi um dos mais formosos talentos que tenho admirado de perto. Da sua boca e da sua pena não despedia os clarões fugazes das inteligências medíocres, mas as fulgurações duradoiras dos espíritos privilegiados.
A inspiração bafejava-o perene e ininterrupta. A toda a hora se encontrava aprestado para dedilhar na lira, afinada cantos suavíssimos, ou para despedir a flecha certeira, penetrante, mortífera sobre preconceitos ridículos.
O seu estilo apurado e primoroso podia intercalar-se nos escritos dos nossos melhores escritores sem desdouro para estes. A palavra de Dantas era correcta, vigorosa, máscula na prosa, em perfeita e ajustada correspondência com a força e firmeza do raciocínio.
Se em vez de se conservar abraçado às musas, tivesse, como tantos outros, despedaçado a harpa, e entrado na política, onde apareceu poucas vezes e de passagem, porém sempre radioso, o seu talento teria sido mais geralmente festejado, e a sua morte seria agora mais sentida, ou mais lamentada.
Contava aproximadamente quarenta anos de idade, e era muito doente, mas aquele cérebro podia-se ainda comparar a um vulcão candente, em contínua ebulição, assombrosamente activo e produtor.
Dotado de uma finíssima agudeza de engenho, espécie de paciência, condão do génio, Dantas adivinhava os segredos da arte, penetrava sem guia, e com o passo seguro, os arcanos da ciência.
A discutir ia tão longe que muitos o perdiam de vista, e bem poucos o acompanhavam. Não aludo aos seus voos rasgados nos espaços da poesia, em que foi muitas vezes sublime, nem a essas outras elevações de pensamento em que se arroubam sem orientação muitas inteligências ou imperfeitas, ou estragadas: refiro-me a discussões sobre princípios gerais em que o espírito obedece à disciplina, em que o raciocínio tem de ir direito e seguro, em que a esfera é vasta, e contudo há trâmites e limites científicos que não é lícito contravir nem ultrapassar. E muitas vezes, no fim dessas discussões, vitorioso, confessava que o assunto era até ali virgem para ele.
Era admiravelmente bela a transformação que nele se operava e se mostrava no olhar sereno e fixo, e na cor levemente rosada das faces, quando a centelha de um assunto prestável a controvérsia lhe era atirada ao espírito incendendo-lho.
Na sua argumentação projectava nas questões a luz vivida que explana e aclara e não enovela e escurece. Tinha argumentos que petrificavam o adversário de surpreso e fulminado.
Com ânimo calmo, o seu espírito via claro e longe.
Pouquíssimos conheciam aqui tão bem, e talvez ninguém melhor do que ele, a castiça língua portuguesa.
A surdez que o colhera ainda moço privara-o de muitos gozos, e gravara-lhe cedo na fronte simpática fundos sinais de tristeza.
Mostrava-se magoadamente saudoso da música, em cada nota da qual encontraria uma sensação consoladora.
O som plangente do sino às Ave marias, o gorjeio dos pássaros, o cicio da folhagem levemente agitada pela viração, o murmúrio refrigerante das águas, a voz terna e amorável da família e dos amigos, regaram-lhe também umas reminiscências, entre gratas e cruciantes, que alguma vez deviam desatar-lhe as lágrimas quando só, sem família, no ermo da sua habitação, percorria em espírito a galeria retrospectiva dos seus tempos felizes.
Perdidos os dias sorridentes de outrora, deixava-se absorver longamente pela literatura que lhe enriquecia cada vez mais o espírito já nativamente dotado com prodigalidade: atraído pela estética extasiava-se no seu estudo em que deparava, como lhe sucedia no abuso de bebidas, com tréguas para as suas dores.
Contudo, os elúvios da juventude não estavam de todo extintos: por vezes tinha coisas infantis, que eram como o reacender das cinzas desse turbilhão de sonhos passados, e revelavam o seu coração bondoso.
Porque moléstias repetidas e pertinazes me reduziram a profunda debilidade, convidei-o há meses a passar a limpo, conforme eu fosse escrevendo, os meus borrões. Aceitou gostoso o encargo, e era de ver a vanglória com que ele nas horas de trabalho corria pressuroso da sua à minha banca para acusar-me um erro, como se eu tivera alguma valia diante da sua ilustração, e o colher-me em lesa-literatura pudesse ser-lhe motivo de glória.
Confiou-me depois o seu romance — Os Embriões — que ainda está em meu poder, para fazer uma carta preambular, ou juízo crítico da obra, com que esta devia sair a lume.
Empreguei então todos os esforços para eximir-me a essa incumbência muitíssimo superior aos meus conhecimentos de romance, e aptidões literárias. Insistiu, e não houve demovê-lo, de modo que fiz um dos maiores sacrifícios, prometendo-lhe afinal a carta exigida.
Talvez por ser pouco apreciado, e menos bem tratado que merecia, mostrava-se muito reconhecido à distinção com que eu cultivava as suas relações, a ponto de, estando enfermo no hospital, escrever e enviar-me uma carta nestes termos:
"Ilmo. e Exmo. Sr. Hypolito Olympio da Costa Andrade. — Estou bastante doente: e apesar de que me falte papel apropriado, como tudo se deve prever de modo possível, autorizo a V. Exa. por este simples meio, mas com todo o valor legal, a dispor de tudo quanto me pertence, dadas certas eventualidades, — especialmente para que possa ficar de lembrança com todos os meus manuscritos, um dos quais ainda está em poder do capitão Marcelino Pires da Costa. — De V. Exa. o mais atento venerador e cr.º obg.mo (a) Guilherme Augusto da Cunha Dantas".
Esta carta, cujo uso é este de a publicar, e o único que dela farei, revelou-me uma dedicação que me comoveu e penhorou profundamente e que nunca poderei esquecer.
As poucas palavras, pois, que deixo escritas, provêm tanto da devida retribuição de afectos, como de um sentimento não menos altamente justo – o da admiração – que me obrigava por igual a prestar esta singelíssima homenagem à memória de um inteligentíssimo filho da província, e cujos defeitos, se algures puderem conturbar-lhe o espírito lúcido, nunca conseguiram apagar uma só linha dos afectos que se lhe gravaram uma vez na alma.
......................................................................
Que o olvido, esse ingrato esquecimento, não apague a sua memória, e por largos tempos lhe vão os conterrâneos esfolhar piedosamente goivos e saudades sobre a campa amiga!
Praia, 28 de Março de 1888
Hypolito O. da Costa Andrade
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
Corrigido no texto. Grato pela correção. Abraço.
Ele nasceu em 1824.
Grato pela partilha destas informações que enrique...
Devido à oportunidade de realizar pesquisas sobre ...
Já está disponível e pode ser baixado em PDF a par...