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Brito-Semedo, 11 Abr 10
Tributo ao Cinema Eden Park
Eden Park
O grupo dos mais velhos, como o Tchéta de Nhô Germano, Funhû de Nhô ‘Nton Bertôle, Lalela de Nha Liza, Lije de Nhô Fonse, Júlio de Nha Maia e outros, criou-nos o gosto pelo cinema, com as suas histórias de cowboys, de caras-pálidas e peles-vermelhas, de sports[1] e bandidos, em que aqueles eram sempre os mais espertos e os mais duros, e das meninas de sport[2], lindas, que eram raptadas e acabavam sempre por ser salvas pelos seus heróis.
Imitávamos o andar balanceado dos cowboys e cuspíamos para o chão de lado, como nos diziam que faziam John Wayne, Burt Lancaster, Charlton Heston, Yul Brinner e Marlon Brando nos filmes de faroeste: Phuh! Do que não gostávamos nada era dos filmes onde o sport morria. Quando assim acontecia, ficávamos comovidos e chorávamos. Os mais velhos, especialmente o meu Tio, davam-nos carolos para pararmos de chorar.
Para nos aceitarem no grupo e ouvir essas histórias, pagávamos com algum favor ou tarefa menor (o Lalela, um dos principais contadores dessas histórias, por ser meu tio e vivermos na mesma casa, abusava desse privilégio em relação a mim), uma moeda ou qualquer “coisa sabe”[3] que levássemos do nosso jantar, como um pedaço de toucinho ou de peixe frito, uma racha[4] de mandioca ou de inhame ou, mesmo, uma batatinha doce cozida.
Quando perguntávamos aos “mais grandes”[5] quais eram os filmes anunciados nos cartazes para a semana (normalmente eram afixados na Rua de Lisboa, numa das esquinas do Pelourinho de Verdura, e na Praça Estrela, na esquina com a Rua de São João), eles respondiam, perante os nossos olhos grilidos[6] e cara de jokopin[7]: “Quando a Terra Galgou o Mar” ou “Tarzan Cagou no Deserto” e os sports são Cherry Blossom e Black Polish. E riam!
Só muito mais tarde viríamos a perceber que esses malandrecos tinham andado a gozar connosco com o trocadilho dos títulos e que os supostos nomes dos actores eram os dizeres que vinham nas latas de graxa de uma marca de então, que usávamos como roda nos carrinhos de lata que construíamos.
O primeiro filme que o nosso grupo de idade terá visto, nesses idos anos da década de mil novecentos e sessenta, ou pelo menos aquele que mais o terá marcado, foi Tarzan, o Magnífico, com Gordon Scott como sport ou actor principal.
Apanhado o gosto pelos filmes, viríamos posteriormente a montar um esquema para saltar a parede do cinema Éden-Park e entrar ou, então, “faziamos uma vaquinha”[8] : com a contribuição de todos, comprávamos o bilhete para um de nós assistir ao filme, para depois contar aos outros. Normalmente era escolhido aquele que tivesse dado alguns tostões a mais ou que soubesse melhor contar histórias (recorrendo a gestos e ao sonoro), ficando os outros ansiosamente na rua à espera.
Por essa ocasião, era ver-nos a tentar imitar o nosso herói de fantasia, Tarzan, o homem-macaco, saltando dos ramos das árvores do Campo Novo[9], acácias e, sobretudo, tarrafes, para o qual pulávamos pelo nosso lado do Pelourinho de Palha ou pelas traseiras da Estação de Telegrafia dos CTT.
Eu era sempre o mais lofa[10], apesar de muito trofel[11], e o mais desajeitado – os mais destemidos e os mais arrojados eram o André de Nhô Guste e o Calutcha de Nha Maia (colegas de brincadeira, de quem viria a perder o rasto por quase quarenta anos!) – mas fazia tudo para ser aprovado pelo grupo e, por isso, concordava sempre em estar à frente das maiores traquinices.
Decididos a semelhar Tarzan, arrastámos, uma vez, um grande pedregulho para nos dar altura e, dele, tomávamos balanço e saltávamos para os ramos dos tarrafes. Lá vamos nós! Depois de umas duas experiências, alguém – ninguém me tira da cabeça que não foi o André de Nhô Guste, o mais ousado de todos nós – terá tido a brilhante ideia de chegar a pedra um pouco mais para trás, tornando, assim, o salto mais difícil, mas também mais perigoso.
Lá me convenceram a ir à frente, mas, quando fiz o salto, não consegui agarrar-me ao ramo da árvore. Os braços revelaram-se curtos, as mãos escorregaram e estatelei-me de costas no chão. Krup!
Para além do susto e de um martelar surdo que começava a subir pela minha nuca, parecia que não tinha sofrido nada de mais. O meu medo maior era ter “apagado o candeirinho”, que é como quem diz, ter partido o cóxis e, por consequência, dizia-se, perdido a visão. Mas eu distinguia a cara de todos, de olhos grilidos a olhar para mim! Admiro-me hoje como, para além das muitas cicatrizes que marcam o meu corpo, nunca ter partido um braço ou uma perna!
Foi então que um dos colegas da brincadeira – o Zé Lino – olhou para a singlete[12] que eu trazia vestido e viu a marca de um vermelho forte que escorria desde o ponto do impacto. Assustado, gritou, dizendo que eu estava cheio de sangue! Instintivamente procurei a fonte das batidas de tambor e trouxe de volta a mão húmida. Ao ver sangue, desatei numa berraria infernal e parti a correr para casa enquanto gritava pela minha avó: – Ó Mãi Liza!...
Coincidia que era essa a hora do fim da tarde, em que as vendedeiras do Pelourinho de Verdura, o Mercado Municipal, voltavam para casa, em direcção ao Monte Sossego, ficando, portanto, a minha casa no seu caminho. Uma delas sugeriu que me rapassem a cabeça no local do ferimento, outra mandou que me pressionassem uma faca molhada em água no hematoma (um grande “galo”) para o fazer baixar, e ainda uma outra ordenou que me pusessem sal moído com açúcar no ferimento para estancar o sangue (opinião essa que prevaleceu), tudo isso numa roda-viva, numa grande barulheira e muita confusão.
Admiro-me hoje como ninguém se lembrou de me levar ao hospital, já que o corte era extenso e profundo e precisaria de alguns pontos para sua suturação! E o que eu chorei!
Deve ter sido depois disso que, de castigo em casa e com a cabeça enrolada em tiras de pano, sem nada para fazer, optei pelas aventuras imaginárias das revistas de quadradinhos – Colecção Falcões, Mundo de Aventuras e Tio Patinhas – que pedia emprestado aos colegas e amigos e passei a devorar, não me importando que me chamassem de lofa quando recusava participar das brincadeiras mais brutas. Daqui me terá ficado o gosto pelo cinema, pela leitura e pelo estudo, que nunca mais perdi.
[2] Personagem feminina, normalmente a amada do protagonista.
[3] Saborosa.
[4] Fatia.
[5] Mais velhos.
[6] Arregalados.
[7] Corruptela de Jonköpin, localidade sueca e nome de uma fábrica de fósforos, muito utilizados na altura e que vinham em caixas com uma criança de perfil com uma madeixa de cabelo em pé no alto da cabeça e uma expressão que achávamos tonta.
[8] Um sistema de todos contribuírem com as moedas que tivessem para comprar algo que beneficiasse o grupo.
[9] Campo de Futebol, Estádio da Fontinha ou Estádio Municipal Adérito Sena, mais posteriormente.
[10] Cobardola.
[11] Traquinas.
[12] Camisola interior sem mangas.
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
Senhor Alipio, sou bisneto do Adérito Sena, neto d...
Olá Brito Semedo. Também apresento m/condolências ...
Bom dia,Apraz-me realçar que li, atentamente, o te...
Essa da faca molhada em água fria para pressionar em cima dos galos na testa já se me tinha perdido na memória. As mufnezas, que os meus irmãos nos vinha contar com pormenores enriquecidos pela mímica gestual, não as olvidarei nunca. Foi a maneira de vivermos em conjunto esses tempos de sadia convivência na nossa terra, onde essa troca de prendas sabe, como drops e ducim de coco, também não estavam ausentes.
Obrigada, Manuel, por me ter trazido momentos inolvidáveis! Recordar é viver e eu vou adormecer com esta imagem a embalar os meus sonhos de hoje!