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JÚLIA

  

(Continuação)

 

  

O Salvador de José Pedro

 

 

 

Caminhando com a pressa que lhe permitia o mau caminho e o seu pesado fardo, o generoso mancebo vê a alguma distância bruxulear uma luz. Dirige-se nesta direcção. Vem-lhe abrir a porta da casa um camponês que mostra ter os seus cinquenta anos, porém ainda forte e robusto. Trajava de luto.

 

Informado pelo valoroso marinheiro do sucedido, o aldeão exclama benzendo-se:

 

– Santo Deus!... Foi ele! Foi o maldito Ricardo! Vai para dez anos, que nenhum crime se comete nesta pobre terra, que não seja obra dele e dos seus infames satélites. Há um mês que o bati-tu[1]passou à noite por minha casa. E daí a três dias...ah! minha filha, minha filha!

 

E o aldeão volta-se para esconder as lágrimas que lhe correm em fio pelo rosto.

 

Esta súbita explosão de dor passou despercebida aos olhos do moço piloto, ocupado em pousar cuidadosamente sobre um leito que o camponês lhe indicara, o corpo daquele a quem acabava de salvar a vida.

 

Imediatamente, parte o aldeão para Santana a chamar o facultativo, enquanto o ferido fica entregue aos cuidados do seu salvador.

 

Pela madrugada, graças aos cuidados do facultativo que prestes acudira, e daqueles a quem poderemos chamar seus amigos, José Pedro foi quase completamente abandonado da febre que ao princípio o acometera, resultando de um ferimento algum tanto grave na cabeça. Reabrindo os olhos, voltou-os ao princípio incertos sobre as pessoas e os objectos que o rodeavam.

 

– Onde estou eu?... perguntou ele enfim com voz fraca.

 

– Entre amigos, responderam-lhe os seus três enfermeiros.

 

– Ah!... sim... agora me recordo. Fui atacado inopinadamente, caí do cavalo, desmaiei... depois... parece-me ter ouvido um tiro, e em seguida muitos passos de pessoas que fugiam... senti-me transportado... A quem devo eu a vida?

 

– A este senhor, respondeu o médico apresentando-lhe o jovem marinheiro, o qual chorava de alegria vendo salvo aquele por quem momentos antes arriscara a própria vida.

 

– Quem sois, meu amigo! perguntou o pai de Júlia, estendendo afectuosamente a mão ao mancebo.

 

Este caiu aos pés do leito, cobrindo de beijos e de lágrimas que lhe estendiam. Depois, prerrompeu comovido:

 

– Não me conhece! Já se não lembra de... Rodolfo?!... Perdão, perdão José Pedro! Deixei-te órfão!...

 

– Rodolfo?!... Pois és tu, meu amigo?!... Sim, fui bem desgraçado, mas tu não tiveste a culpa: eras tão novo ainda... Por um fatal acaso, pela tua pouca idade, pela influência da natureza, ocasionaste a morte do meu pai. Hoje, a tua coragem e dedicação, acabam de salvar o filho. Lá do céu, onde nos contempla, meu pai decerto te louva e abençoa. Abençoado sejas, Rodolfo, meu amigo, meu filho!

 

E aqueles dois excelentes corações uniram-se em estreito abraço.

 

 Os Dois Primos

 

José Pedro, com a expansão sincera de uma alma boa e reconhecida, agradeceu aos outros dois homens que também haviam contribuído para a sua salvação.

 

– António Silvestre, disse ele depois a seu hóspede, que assim se chamava, e a minha família já sabe do sucedido!

 

– Descanse, meu senhor! Respondeu-lhe o bom do aldeão na sua rude linguagem, armei-lhe lá uma historieta, dizendo-lhe que Nhô José Pedro, por urgências de serviço se tinha visto obrigado a pernoitar em Fajã d'Água, e me tinham enviado a participar-lho.

 

Todavia, ao romper da manhã, partia António Silvestre a dar parte a D. Elvira do verdadeiro estado de seu esposo, que era o menos assustador possível.

 

Duas horas depois, duas senhoras se apeavam dos seus burrinhos à porta da rústica habitação de António Silvestre, o qual as acompanhava com alguns escravos de José Pedro.

 

Eram D. Elvira e a sua encantadora filha, que debulhadas em lágrimas foram cair de joelhos aos pés do leito em que jazia ferido seu esposo e pai, que as recebeu nos braços.

 

Serenados os primeiros transportes de dor e alegria, José Pedro apresentou às duas senhoras o seu salvador.

 

Júlia, ao dar a casta fronte a beijar àquele que seu pai chamou sobrinho e filho, corou até às alvas dos olhos. Da sua parte, o gentil mancebo não ficou menos perturbado ao tocar com os lábios trémulos na face acetinada da bela priminha.

 

Devo dizer aqui ao leitor que a mãe de Rodolfo era irmã da avó de Júlia, a defunta D. Júlia de Lima.

 

Rodolfo informou-se então de sua mãe, e soube com inteiro júbilo que era viva, e não se quis demorar em a ir abraçar. À pobre velhinha pouco faltou para morrer de alegria ao ver o filho. Não estava só no mundo! Era viúva, mas tinha um filho, que lhe viera trazer a consolação e o alívio na sua cansada velhice.

 

Quatro dias depois, achando-se José Pedro quase completamente restabelecido, quis regressar a sua casa em Santana, no que o facultativo assentiu.

 

Partiu pois em uma cómoda cadeirinha levada por dois possantes escravos, seguido de sua esposa e filha que iam montadas nos seus burrinhos. Fechavam a marcha Rodolfo e António Silvestre, que iam conversando.

 

Mas Rodolfo parecia muito distraído. Não tirava os olhos da esbelta figura de suas prima, alegando para isso que o pacífico orelhudo em que ela ia tropeçava frequentemente. Da sua parte, a gentil donzelinha parecia ser da opinião de seu primo, porque voltava frequentemente a cabeça do lado em que ele ia, e nestas ocasiões seus olhos se encontravam, vivo rubor lhes coloria as faces... já se amavam.

 

Ricardo Galvão

 

Ricardo Galvão que vimos ficar gravemente ferido pela bala da pistola sobre ela disparada por Rodolfo, a qual foi extraída do ombro com bom êxito pelo mesmo facultativo que tratara a sua premeditada vítima, não sucumbiu.

 

 Quando o teve salvo e restabelecido, o honrado cirurgião disse-lhe com severidade:

 

– Mancebo! Eis-vos salvo. Podia ter-vos deixado perecer, que o remorso não atormentaria a minha consciência. Expurgava a terra de mais um monstro. Mas restitui-vos a vida, e oxalá que de ora avante a empregueis melhor, procurando reparar os muitos males que tendes feito. Ao contrário, quando as vossas torpes acções vos conduzirem à beira do precipício, ninguém vos estenderá mão valedora, e a justiça de Deus seguirá seu curso.

 

Aquele homem acabava de lhe salvar a vida quase milagrosamente, empregando nisso todos os esforços de suas ciências, noites desveladas, cuidados de mãe, que infeliz e fatalmente para si, Ricardo Galvão não chegara a conhecer.

 

Escutou-o pois num silêncio atento, quase religioso. E quando o digno homem acabou o seu exórdio, pois mais empedernido que fosse o seu coração, Ricardo sentiu rebentarem-lhe dos olhos até ali impassíveis, dois rios de lágrimas que lhe inundaram o rosto e o peito.

 

Escondendo o rosto entre as mãos, apenas pôde balbuciar:

 

– Oh! sim, senhor! Emendar-me-ei!...

  

O honrado médico saiu dali com o coração jubiloso, crendo ter salvado não só uma vida, mas uma alma que prestes estava a abismar-se nas voragens do crime, do inferno.

 

Ricardo tinha caído em profunda e cruel meditação. Ante seus olhos que agora pareciam envergonhar-se de ver a luz do dia, apresentaram-se como num sonho, todas as passadas e terríveis cenas da sua vida desregrada.

 

 Viúvas e órfãos esbulhados do seu património, pedindo a Deus castigo contra o miserável que os deixara sem pão e sem abrigo; esposas deplorando a perda da sua honra; donzelas cujas cordas de virgem ele desfolhara a uma e uma, lançando depois as folhas já ressequidas à lama de suas paixões brutais. — Tais são as negras recordações que como fantasmas aterradores se apresentaram ao seu espírito.

  

....................................................

 

(Continua)

 

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[1] Pássaro marinho, semelhante ao corvo pequeno. O seu canto lúgubre pressagia desgraças àqueles por cuja morada passou. Mais uma superstição daquela pobre gente!

 

 

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4 comentários

De Ernestina Santos a 14.04.2010 às 22:48

Não sou bravense mas gostei da cena nº 5 da história, que estou a ler ao contrário sem perder o fio condutor do enredo habilmente delineado.
O episódio salienta a vida dura das gentes da nossa terra, desde tempos de antanho, e faz recordar superstições herdadas dos portugueses, como a do pássaro semelhante ao corvo que passa "a anunciar desgraças", tal e qual como em aldeias no interior de Portugal.
Romance, mistério, acção... As emoções humanas analisadas pelo olhar de um humanista, que nos deixa no ar uma mensagem de esperança.

De Brito-Semedo a 14.04.2010 às 23:36

É isso mesmo, Amiga, como dizemos em S. Vicente, "catchiu" o espírito da coisa! É por tudo isso que me propûs fazer a divulgação dos textos e do Autor, que é co-fundador, juntamente com Evaristo d'Almeida, da Literatura Cabo-verdiana. Apareça mais vezes pois, "Na Esquina", haverá sempre um bom dedo de prosa!

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