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Brito-Semedo, 17 Abr 10
JÚLIA
(Continuação)
A Festa de Santo António na Ilha Brava
Amanhecera esplêndido o dia 13 de Junho de 1860. Parecia que a natureza, ataviando-se com as suas galas mais ricas, queria festejar dignamente o glorioso filho de Lisboa, o popular Santo António.
Apenas uma ligeira neblina que desde a madrugada se formara sombreava os frondosos bosques de cafeeiros e bananeiras, cujas largas folhas baloiçavam brandamente, impelidos por amena viração. Porém o sol que se levantava radiante, prometendo um dia bastante calmoso, dissipava a mesma neblina, e fazia brilhar como pérolas as cristalinas gotinhas de orvalho que tremulavam nas flores e folhas das plantas balsâmicas que circundavam algumas brancas casinhas de Pé-da-Rocha, e que com seus doces perfumes completavam, embriagando os sentidos, o quadro esplêndido da natureza.
Em suma – estava uma bela manhã!
E não menos bela e alegre era a cena que àquela mesma hora se passava em quase toda a extensão da ilha. As festas dos santos – António, João e Pedro – são as mais estrondosas que se celebram naquela boa terra. E sinto bastante que a minha brevidade com que escrevo me não permita fazer delas uma descrição mais sucinta aos meus leitores.
Além dos ofícios da igreja, há fogueiras, foguetório, salvas de artilharia, muitos presentes duma parte e de outra, lautos jantares em que abundam o xerém[1]e a batanca[2]; cavalhadas, bailes, serenatas, etc., etc. a datar da antevéspera do dia festivo.
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Ouvia-se o alegre repique dos sinos em Santana; por toda a parte se cruzavam vistosos bandos de moços e donzelas; aqueles tangendo alegremente nas suas violas, estas acompanhando-as com suas melodiosas cantigas ao som de palmas compassadas. Todos se dirigiam a plantar os mastros nos pontos mais culminantes da ilha, para cujo fim e enfeites quatro possantes rapagões do bando levavam aos ombros um formidável tronco de papaieira ou de outra árvore gigantesca; e as raparigas levavam à cabeça canastras, nas quais alvas toalhas ocultavam os ananases, as bananas, as uvas, os cocos, as tâmaras e muitas outras frutas, queijos, frascos de licores, etc., que haviam de ser suspensos das vergas e cordas dos mastros, que se coroavam de alegres galhardetes.
Os Dois Rivais
Em Pé-da-Rocha erguera-se também um mastro dos mais grados e vistosos, num espaçoso e elevado terreiro.
Estava a terminar o tão festivo dia; e, como saudosos para se despedirem dele, o vasto terreiro estava apinhado de gente, moços e velhos.
Três pessoas aí passeavam, que eram o alvo de todos os olhares e de todas as atenções. Eram os nossos antigos conhecidos José Pedro, sua filha, e Rodolfo.
O mancebo dava o braço à sua prima, que nele se recostava com certa languidez. Rodolfo era feliz, porque via o seu amor correspondido, e nenhum obstáculo se opunha ao seu futuro enlace com aquela que amava, e cujo pai lhe permitia receber de Rodolfo o doce título de noiva.
A gentil crioula estava mais radiante de beleza do que nunca. Trajava vestido de cetim azul que, amoldado ao seu corpo esbelto, lhe fazia sobressaltar as formas divinais. Dos ombros, dum torneado admirável, pendia-lhe custoso xaile de caxemira. Sob um lencinho de seda azul-escuro destacava-se a fronte pura de suave palidez, na qual os olhos lançavam esses lânguidos reflexos que são o fogo do amor.
Rodolfo também vestia com igual elegância; e, ou fosse acaso ou premeditação, o seu colete, sobre o qual brilhava grosso cordão de oiro, era de estofo da mesma cor que o vestido, da priminha bonita.
Rodolfo conversava com sua noiva à qual dava a direita, tendo à sua esquerda o pai de Júlia que dava o braço a uma venerável velhinha, a qual esqueceu-me mencionar no grupo, e era mãe de Rodolfo.
Súbito, Rodolfo que não desviava os olhos das feições de sua prima, viu-a empalidecer ao mesmo tempo que lhe apertava fortemente o braço agitando-lhe todo o corpo um tremor convulso.
– Que tens, Júlia? perguntou o mancebo assustado.
– Ele!... ele! balbuciou a donzela, enquanto com o gesto designava um homem que, parado a uns vinte passos dali, os estava contemplando como petrificado.
– Quem é aquele homem?
– É... Ricardo!
– O assassino de seu pai! Rugiu Rodolfo largando o braço da sua prima, que esteve para cair redondamente no chão.
Porém José Pedro ainda teve tempo de o conter.
De sua parte, Galvão que operara o mesmo movimento para se lançar ao seu rival, se deteve, e afastou-se precipitadamente.
Durante um ano inteiro lutara Galvão por sufocar o insensato amor que concebera pela filha de José Pedro, amor cujo fogo em seu peito lavrava dia a dia mais intenso – e nele se houvera purificado, se a sua alma não estivesse já de todo corrompida.
Retirado no interior duma das suas propriedades, Ricardo não tornara a aparecer na sociedade. Esta quase o havia esquecido – tão depressa se esquecem os maus.
José Pedro não o delatara à justiça, porque a mesma justiça o temia e acatava.
Pela vez primeira resolveu Ricardo pôr termo ao seu voluntário exílio, que já não podia tolerar; e apareceu ao lugar da festa em Pé-da-Rocha onde o vimos.
Sabia que José Pedro para ali se retirara, a fim de afastar daquele cujas perseguições ainda temia.
O pensamento dominante de Galvão era ver Júlia; e viu-a, mais ditosa, mas amando outro, e sendo por ele amada.
E como estivesse imóvel, como pregado ao solo, lutando ainda entre bons e maus sentimentos, a seus ouvidos chegaram as vozes de dois aldeões que a pouca distância conversavam.
– São mesmo uns pombinhos! dizia um deles.
– E bem dignos um do outro, acrescentou o segundo.
– Nhô José Pedro tenciona casá-los daqui a dois meses.
– E faz bem Nhô José Pedro, que só assim poderá recompensar a quem lhe salvou a vida.
– A propósito! E aquele maldito do Ricardo?
– Certamente morreu... e prantearam-no aí para qualquer canto.
Mal sabiam os pobres homens que a dois passos dali os estava ouvindo aquele mesmo sobre quem falavam, e cuja alma as suas palavras torturavam.
Ao saber que o seu feliz rival era o homem que malograra a sua vingança na pessoa de José Pedro, que o pusera às portas da eternidade, que este mesmo homem breve desposaria aquela a quem ele Galvão, também amava, Ricardo olvidou os salutares conselhos do médico que lhe salvara a vida; esqueceu um ano de incessantes martírios, e o demónio do ciúme entornou-lhe no coração todo o seu cálix de fel. A alma milagrosamente salva tornou a abismar-se nas profundas do inferno!
Foi neste momento que Júlia fez nele reparo, e que os dois rivais operaram o seu movimento agressivo.
Rapto
Ricardo compreendera que tinha contra si não só um adversário robusto e temível, mas a povoação em peso que o odiava. E sorriu-se daquilo a que ele chamava sua puerilidade.
Retirando-se, Ricardo ia delineando um de seus monstruosos planos de vingança.
Tomou pela espaçosa estrada com que costeava a aldeia, e tendo andado uns cinquenta passos, parou defronte dum formoso quintalinho, ou antes jardim, defendido por um muro de quatro pés de altura, e que ia dar a um encantador retiro, rival das poéticas – vila – italianas.
Esta encantadora vivenda, a mesma que fizemos entrever ao leitor no começo desta narrativa, pertencia, como conjuntamente dissemos a Nhô José Pedro.
Galvão observava as dependências da vila com a atenção escrupuloso e metódica dum general previdente que estuda o plano da praça que pretende atacar, ou um ladrão jubilado os rodeios duma propriedade que há-de assaltar.
Certamente o exame foi favorável aos seus tenebrosos intentos, porque um sorriso de satisfação lhe adejou nos lábios.
– Ah! desta vez (murmurou ele), não se me há-de opor o tal bigorrilhas... ou então!... (e como complemento da frase medonha, levou a mão ao bolso furtado do casaco). – Imprudentes! (prosseguiu, olhando para uma janela do andar superior, apenas cerrada). – Decididamente, Deus... ou antes o diabo, protege-me hoje!...
E o bandido afastou-se esfregando as mãos, e sorrindo-se naquele seu particular sorriso.
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Já a noite desdobrava sobre a terra o seu manto de trevas.
A mocidade da aldeia passava alegremente o tempo em danças e folgares na residência do Rodolfo, que fora eleito mordomo para o ano seguinte. Escusado será dizer que Júlia também ali se achava com o seu pai. D. Elvira sentindo-se um pouco incomodada, não saíra de casa todo o dia.
Neste momento, isto é, duas horas depois de Ricardo haver deixado o seu posto de observação, dois homens montados em robustos cavalos caminhavam pela já mencionada estrada.
Chegados em frente da casa de José Pedro, os desconhecidos apearam, e conduzindo os cavalos à mão internaram-se num bosque que lhes ficava à esquerda, onde amarraram solidamente as suas cavalgaduras.
Depois de escrupulosa revista aos pontos circunvizinhos, e tanto quanto a escuridão permitia, os dois foram saindo do bosque, chegaram à estrada, pararam, tornaram a observar e escutar e afinal, vendo que não eram observados, escalaram o muro do quintalinho; e caminhando protegidos pelas trevas e pelo chão relvoso que abafava seus passos, em breve chegaram debaixo das janelas da casa.
Uma destas janelas, creio tê-lo já dito, era sombreada por frondosa goiabeira.
Observando com precauções ainda mais rigorosas do que as tomadas na estrada, os dois salteadores nocturnos — outra coisa não podiam ser — treparam aquela árvore e pela janela que o descuido ou a confiança dos habitantes da casa deixaram soaberta, penetraram nela, exactamente no quarto de dormir da filha de José Pedro.
Às 10 horas da noite Rodolfo acompanhava seu tio e sua noiva que regressavam a casa. Depois da cena quase violenta do terreiro, o pobre moço sentia-se possuído de vaga tristeza, e como pressentimento de desgraça iminente lhe enlutava o coração.
Ao entrar no seu quarto, vendo Júlia que a janela se achava aberta, dirigiu-se a fechá-la.
No mesmo instante, dois homens saindo mansamente de sob um leito se acercaram dela, e enquanto um a enlaçava pela cintura, e a levantava do solo, o outro lhe tapava a boca com um lenço, de sorte que a donzela não pôde nem gritar, nem fazer o menor movimento.
O castiçal que ela segurava escapou-se-lhe das mãos, caindo sobre o sobrado com estrondo.
Esta bulha, e a que fizeram os malvados fugindo precipitadamente, atraiu a atenção de José Pedro, que no andar inferior conversava com a esposa. Chamou a filha; e como esta não lhe respondesse, subiu acima para indagar a causa de tal motim.
O aposento de Júlia estava vazio, via-se a janela aberta, o castiçal derribado.
– Júlia! minha filha! bradou o desgraçado pai.
Respondeu-lhe o ruído do galopar de dois cavalos que se afastavam aceleradamente, e os soluços de sua infeliz esposa que entrava no quarto.
(Continua)
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[1] Milho guisado (!)
[2] O pão-rei da festa, feito de farinha de milho mui fina com recheio de bananas, cozido entre folhas de bananeiras e lume por cima.
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
Senhor Alipio, sou bisneto do Adérito Sena, neto d...
Olá Brito Semedo. Também apresento m/condolências ...
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