Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

 

Brava.jpeg

Nascer do Sol, Ilha Brava. Foto de Gerson Brito-Semedo (2005)

 

 

 

JÚLIA

 

(Continuação)

  

 

A Justiça de Deus

 

  

– Chamem Rodolfo! ordenou José Pedro aos domésticos que haviam acudido.

 

– Aqui estou, meu pai! bradou esbaforido o mancebo, entrando.

 

 – Sei tudo. Retirando-me para casa, senti um grande ruído na estrada, a alguns passos de mim, e dirigindo-me nessa direcção, percebi um vulto informe que se internava rapidamente no bosque, e ao mesmo tempo ouvi um gemido... gemido que me chegou ao coração!... Precipitei-me sobre os bandidos, porém estes tinham desaparecido na espessura do bosque. Depressa, meu pai! a cavalo!...

 

Dez minutos depois, o tio e o sobrinho montados em dois fogosos ginetes, tinham-se precipitado em perseguição dos fugitivos.

 

A noite estava escuríssima. Nem uma estrela brilhava no céu. O caminho era áspero e em declive para a montanha. Entretanto os dois cavaleiros galopavam com a velocidade do raio. Por vezes as pedras soltas da estrada faiscavam fogo sob as patas dos dois ginetes, e o ruído de seus passos era o único que vinha interromper o lúgubre silêncio que pesava sobre os bosques sombrios. Mas os dois viam nas trevas  – que mais espessa era a que lhes cerrava os corações.

 

Chegados a uma encruzilhada, Rodolfo e José Pedro trocaram breves palavras e sempre galopando, tomaram por duas estradas diferentes. Cada uma destas estradas ia dar a uma propriedade de Galvão. Assim havia mais probabilidade de o encontrar. Não duvidavam que fosse ele o autor do infame atentado.

 

............................................

 

Ricardo conduzindo a donzela raptada tinha chegado à sua propriedade do Incião. Caminhara quase rapidamente como os que, sem ele o suspeitar, o perseguiam.

 

Confiava em que primeiro o procurariam em Santana e outros pontos distantes, caso houvessem suspeitas dele.

 

Porém Ricardo não contara com a firme convicção de José Pedro e Rodolfo sobre a sua criminalidade, e o haverem sido vistos, ele e o seu cúmplice, por Rodolfo, quem adivinhara a direcção provável que tomariam os raptores.

  

O ar fresco da noite e os balanços produzidos pelo galopar rápido do cavalo tinham feito tornar a si a donzela desmaiada.

 

Ao entrar o portão da quinta para onde a conduziam os seus raptores, Júlia reanimada, reparou no homem que o viera abrir, o qual tinha uma lanterna na mão. Certamente ela o reconheceu, porque lhe estendeu a mão suplicante; no que Galvão não reparou, entretido em se apear, e em dar algumas instruções, concernentes à situação, àquele que parecia caseiro da quinta, e ao seu cúmplice.

 

Ao gesto de súplica que fez Júlia, respondera o aldeão levando um dedo aos lábios como recomendando-lhe silêncio e prudência, e assegurando-lhe por um sinal expressivo a sua protecção.

 

Poucos momentos depois, o cúmplice de Ricardo, tornando a montar, desaparecia pela mesma estrada que haviam percorrido.

 

Não tinha andado uns cinquenta passos, que um vulto... um furacão lhe passou ao lado, quase derribando-o do cavalo...

 

Ricardo entrando em casa tinha conduzido a sua vítima para uma sala ao rés-do-chão, cuja porta fechou cuidadosamente, depois do que acendeu uma luz.

  

Júlia, achando-se em liberdade, tirou o lenço que a amordaçava, quase sufocando-a.

 

Certa de ter, não longe de si, um amigo protector, a donzela não temeu pela sua posição desesperada. Cruzou os braços sobre o seio lindo que lhe arfava com violência, e fitando no seu infame raptor seus belos olhos negros em que fulguravam a cólera e o desdém, disse-lhe com voz vibrante:

 

– Sois um miserável, senhor!

 

O bandido contemplava-a com enlevo, calculando na alma sórdida um mundo de infernais delícias. Júlia estava tão bela de comoção!...

 

Ouvindo-a, o malvado soltou uma gargalhada cínica.

 

– Recriminações, minha bela? Disse ele. – As crueldades aqui são inúteis.

 

E quis tocar com mão profana na filha de José Pedro.

 

– Senhor!! Bradou a casta virgem, resplandecendo-lhe no semblante tal expressão de dignidade e altivez, que o ousado libertino recuou, mau grado seu.

 

Porém este movimento de hesitação foi rápido. O monstro, encorajando-se com a formosura da donzela indefesa, avançou para ela ainda com maior ousadia, cingindo-a pela cintura, enquanto seus lábios impúdicos procuravam aqueles tão castos e tão belos!

 

Então a pobre menina, louca de terror, bradou:

 

– Socorro!... Rodolfo! meu pai!

 

– Júlia!... respondeu de fora uma voz forte e bem conhecida da donzela. Ao mesmo tempo a porta estalava, cedendo, forçada por ombros robustos.

 

Ao mesmo tempo também uma janela de vidraças voava em estilhas, e por ela penetrava um homem.

 

Com o ímpeto do raio precipitou-se na sala um homem, pálido, desgrenhado, ameaçador, empunhando em cada mão uma pistola.

 

Este homem era Rodolfo.

 

Júlia caiu desmaiada nos braços do seu amante. O anjo da sua guarda não a desamparara.

 

Galvão mal teve tempo de saltar pela janela aberta. Atrás dele, como se fosse a sua sombra, saltou aquele que pela janela se introduzira tão abruptamente, agarrando-o na queda pelo pescoço.

 

– Misericórdia, gemeu o desgraçado, louco de terror, e meio estrangulado.

 

– Misericórdia contigo, cão?! troou uma voz rude.

 

Ricardo, sentindo afrouxar a cadeia de ferro que lhe apertava a garganta, tentou falar.

 

– Quem sois? balbuciou ele.

 

– A justiça de Deus! – respondeu o desconhecido com voz retumbante.

 

– Ah! exclamou o bandido, sentindo percorrer-lhe o corpo todo um calafrio mortal.

 

Porém, restabelecendo-se, súbito, ante a eminência do perigo, levou a mão ao bolso furtado da casaca, e nas trevas, lampejou a lâmina dum punhal.

 

Mas, rápido com o pensamento, o desconhecido segurara-lhe o pulso, apertando-lho com tanta força, que o assassino soltou um grito de dor caindo-lhe das mãos o ferro homicida.

 

Neste momento, a lua que até ali estivera encoberta mostrou a sua face pálida.

 

– António Silvestre?!... bradou aterrado Galvão, reconhecendo o seu inimigo.

 

– Sim, sou eu, miserável! Respondeu o montanhês. Sou eu que hoje te venho pedir contas da morte da minha filha que não pôde suportar a sua desonra e a minha!... Desgraçado!... Há um ano que estou aproximando de ti, que te vigio, que tomo nota das tuas menores acções, sempre esperando a hora determinada por Deus para o teu castigo e minha vingança. Soou ela enfim!... Ricardo Galvão, está cheia a taça das tuas iniquidades! Uma gota de água a fez transbordar... Morrerás!...

 

Assim falando, António Silvestre fora-lhe vergando os braços, a ponto de o prostrar a seus pés.

 

Ricardo quis gritar. Porém o aldeão pondo-lhe um joelho no peito, sufocou-lhe a voz na garganta.

 

– Oh! não me mate, senhor!... gemeu o miserável, transido de medo. –Quereis dinheiro? Dou-vo-lo todo, tudo quanto possuo!...

 

A resposta de António Silvestre foi uma gargalhada estridente.

 

– De que me serve o teu oiro miserável? Cada peça desse oiro é uma taça de lágrimas de inocentes desgraçados que ora clamam a Deus vingança, contra ti. Cumpra-se a justiça de Deus! Morre, Ricardo Galvão!!...

 

Os ossos do desgraçado rangeram estalando sob a pressão dos joelhos do robusto camponês. Um grito de angústia se confundiu com um estertor de agonia, sufocado por uma golfada de sangue que espadanando-lhe dos olhos, boca e ouvidos, borrifou a cara de seu matador.

 

– Estás vingada, minha filha! bradou António Silvestre com feroz alegria. – O sangue de teu sedutor e assassino encobre o pejo que me coloria a face!!...

 

Epílogo

 

Seis anos depois dos acontecimentos que levamos dito, Rodolfo, transportado ao cúmulo da felicidade, esposou sua prima, a bela e angélica Júlia.

 

 

 

Ainda hoje vive sossegado na sua encantadora vivenda de Pé-da-Rocha Nhô José Pedro, rodeado de seus filhos e netos, nos quais feliz se revê, e sendo o esteio dos desgraçados.

  

António Silvestre, metido em processo, foi condenado a degredo perpétuo para as costas da Guiné.

 

– Vinguei minha filha e a nossa desonra! – dizia o desditoso velho. – Perdoai-me, meu Deus!

 

_______

 

P. S. – "Nhô José Pedro ou Cenas da Brava", foi dado à estampa em 1867, inserido no livro Contos Singelos (Mafra, Portugal). Tinha então Guilherme Dantas 19 anos. Posteriormente o mesmo conto foi editado no jornal A Voz de Cabo Verde, de 10 de Fevereiro a 16 de Junho de 1913, em 13 números. Depois disso, é a primeira vez que o conto volta a ser publicado.

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

6 comentários

De Ernestina Santos a 20.04.2010 às 18:19

Não conhecia a prosa de Guilherme Dantas, apenas a sua poética. As duas formas estão em simbiose, com a dramaticidade bem vincada em qualquer uma delas. Pelos vistos, a vivência de Guilherme Dantas marcou-o profundamente e ele verteu nas palavras as tristezas prr que sofreu na sua vida. O epílogo é coerente e bem urdido.

De Brito-Semedo a 21.04.2010 às 01:46

Até há bem pouco tempo, nem a poesia de Guilherme Dantas era conhecida e a prosa, menos ainda. Descobri Guilherme Dantas e esse manancial em 1999, na Biblioteca Nacional de Lisboa e, a partir disso, organizei em livro o seu romance inédito "Memórias dum Pobre Rapaz" (Praia, IBNL , 2007). No post do fim-de-semana, farei a apresentação desse romance.

Tenho também organizado, desde 2000, um outro livro da restante ficção de Dantas, "Contos e Bosquejos", que não consigo editar. Quanto às considerações que faz, só tenho que concordar com a sua leitura, porque correcta.

Continue passando pela "Na Esquina do Tempo" e de um dedo de prosa!

Comentar post

Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...

Pesquisar

Pesquisar no Blog

Jornalista e Poeta Eugénio Tavares

Comunidade

Powered by