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Magazine Cultural a divulgar Cabo Verde desde 2010
Brito-Semedo, 20 Abr 10
Nascer do Sol, Ilha Brava. Foto de Gerson Brito-Semedo (2005)
JÚLIA
(Continuação)
A Justiça de Deus
– Chamem Rodolfo! ordenou José Pedro aos domésticos que haviam acudido.
– Aqui estou, meu pai! bradou esbaforido o mancebo, entrando.
– Sei tudo. Retirando-me para casa, senti um grande ruído na estrada, a alguns passos de mim, e dirigindo-me nessa direcção, percebi um vulto informe que se internava rapidamente no bosque, e ao mesmo tempo ouvi um gemido... gemido que me chegou ao coração!... Precipitei-me sobre os bandidos, porém estes tinham desaparecido na espessura do bosque. Depressa, meu pai! a cavalo!...
Dez minutos depois, o tio e o sobrinho montados em dois fogosos ginetes, tinham-se precipitado em perseguição dos fugitivos.
A noite estava escuríssima. Nem uma estrela brilhava no céu. O caminho era áspero e em declive para a montanha. Entretanto os dois cavaleiros galopavam com a velocidade do raio. Por vezes as pedras soltas da estrada faiscavam fogo sob as patas dos dois ginetes, e o ruído de seus passos era o único que vinha interromper o lúgubre silêncio que pesava sobre os bosques sombrios. Mas os dois viam nas trevas – que mais espessa era a que lhes cerrava os corações.
Chegados a uma encruzilhada, Rodolfo e José Pedro trocaram breves palavras e sempre galopando, tomaram por duas estradas diferentes. Cada uma destas estradas ia dar a uma propriedade de Galvão. Assim havia mais probabilidade de o encontrar. Não duvidavam que fosse ele o autor do infame atentado.
............................................
Ricardo conduzindo a donzela raptada tinha chegado à sua propriedade do Incião. Caminhara quase rapidamente como os que, sem ele o suspeitar, o perseguiam.
Confiava em que primeiro o procurariam em Santana e outros pontos distantes, caso houvessem suspeitas dele.
Porém Ricardo não contara com a firme convicção de José Pedro e Rodolfo sobre a sua criminalidade, e o haverem sido vistos, ele e o seu cúmplice, por Rodolfo, quem adivinhara a direcção provável que tomariam os raptores.
O ar fresco da noite e os balanços produzidos pelo galopar rápido do cavalo tinham feito tornar a si a donzela desmaiada.
Ao entrar o portão da quinta para onde a conduziam os seus raptores, Júlia reanimada, reparou no homem que o viera abrir, o qual tinha uma lanterna na mão. Certamente ela o reconheceu, porque lhe estendeu a mão suplicante; no que Galvão não reparou, entretido em se apear, e em dar algumas instruções, concernentes à situação, àquele que parecia caseiro da quinta, e ao seu cúmplice.
Ao gesto de súplica que fez Júlia, respondera o aldeão levando um dedo aos lábios como recomendando-lhe silêncio e prudência, e assegurando-lhe por um sinal expressivo a sua protecção.
Poucos momentos depois, o cúmplice de Ricardo, tornando a montar, desaparecia pela mesma estrada que haviam percorrido.
Não tinha andado uns cinquenta passos, que um vulto... um furacão lhe passou ao lado, quase derribando-o do cavalo...
Ricardo entrando em casa tinha conduzido a sua vítima para uma sala ao rés-do-chão, cuja porta fechou cuidadosamente, depois do que acendeu uma luz.
Júlia, achando-se em liberdade, tirou o lenço que a amordaçava, quase sufocando-a.
Certa de ter, não longe de si, um amigo protector, a donzela não temeu pela sua posição desesperada. Cruzou os braços sobre o seio lindo que lhe arfava com violência, e fitando no seu infame raptor seus belos olhos negros em que fulguravam a cólera e o desdém, disse-lhe com voz vibrante:
– Sois um miserável, senhor!
O bandido contemplava-a com enlevo, calculando na alma sórdida um mundo de infernais delícias. Júlia estava tão bela de comoção!...
Ouvindo-a, o malvado soltou uma gargalhada cínica.
– Recriminações, minha bela? Disse ele. – As crueldades aqui são inúteis.
E quis tocar com mão profana na filha de José Pedro.
– Senhor!! Bradou a casta virgem, resplandecendo-lhe no semblante tal expressão de dignidade e altivez, que o ousado libertino recuou, mau grado seu.
Porém este movimento de hesitação foi rápido. O monstro, encorajando-se com a formosura da donzela indefesa, avançou para ela ainda com maior ousadia, cingindo-a pela cintura, enquanto seus lábios impúdicos procuravam aqueles tão castos e tão belos!
Então a pobre menina, louca de terror, bradou:
– Socorro!... Rodolfo! meu pai!
– Júlia!... respondeu de fora uma voz forte e bem conhecida da donzela. Ao mesmo tempo a porta estalava, cedendo, forçada por ombros robustos.
Ao mesmo tempo também uma janela de vidraças voava em estilhas, e por ela penetrava um homem.
Com o ímpeto do raio precipitou-se na sala um homem, pálido, desgrenhado, ameaçador, empunhando em cada mão uma pistola.
Este homem era Rodolfo.
Júlia caiu desmaiada nos braços do seu amante. O anjo da sua guarda não a desamparara.
Galvão mal teve tempo de saltar pela janela aberta. Atrás dele, como se fosse a sua sombra, saltou aquele que pela janela se introduzira tão abruptamente, agarrando-o na queda pelo pescoço.
– Misericórdia, gemeu o desgraçado, louco de terror, e meio estrangulado.
– Misericórdia contigo, cão?! troou uma voz rude.
Ricardo, sentindo afrouxar a cadeia de ferro que lhe apertava a garganta, tentou falar.
– Quem sois? balbuciou ele.
– A justiça de Deus! – respondeu o desconhecido com voz retumbante.
– Ah! exclamou o bandido, sentindo percorrer-lhe o corpo todo um calafrio mortal.
Porém, restabelecendo-se, súbito, ante a eminência do perigo, levou a mão ao bolso furtado da casaca, e nas trevas, lampejou a lâmina dum punhal.
Mas, rápido com o pensamento, o desconhecido segurara-lhe o pulso, apertando-lho com tanta força, que o assassino soltou um grito de dor caindo-lhe das mãos o ferro homicida.
Neste momento, a lua que até ali estivera encoberta mostrou a sua face pálida.
– António Silvestre?!... bradou aterrado Galvão, reconhecendo o seu inimigo.
– Sim, sou eu, miserável! Respondeu o montanhês. Sou eu que hoje te venho pedir contas da morte da minha filha que não pôde suportar a sua desonra e a minha!... Desgraçado!... Há um ano que estou aproximando de ti, que te vigio, que tomo nota das tuas menores acções, sempre esperando a hora determinada por Deus para o teu castigo e minha vingança. Soou ela enfim!... Ricardo Galvão, está cheia a taça das tuas iniquidades! Uma gota de água a fez transbordar... Morrerás!...
Assim falando, António Silvestre fora-lhe vergando os braços, a ponto de o prostrar a seus pés.
Ricardo quis gritar. Porém o aldeão pondo-lhe um joelho no peito, sufocou-lhe a voz na garganta.
– Oh! não me mate, senhor!... gemeu o miserável, transido de medo. –Quereis dinheiro? Dou-vo-lo todo, tudo quanto possuo!...
A resposta de António Silvestre foi uma gargalhada estridente.
– De que me serve o teu oiro miserável? Cada peça desse oiro é uma taça de lágrimas de inocentes desgraçados que ora clamam a Deus vingança, contra ti. Cumpra-se a justiça de Deus! Morre, Ricardo Galvão!!...
Os ossos do desgraçado rangeram estalando sob a pressão dos joelhos do robusto camponês. Um grito de angústia se confundiu com um estertor de agonia, sufocado por uma golfada de sangue que espadanando-lhe dos olhos, boca e ouvidos, borrifou a cara de seu matador.
– Estás vingada, minha filha! bradou António Silvestre com feroz alegria. – O sangue de teu sedutor e assassino encobre o pejo que me coloria a face!!...
Epílogo
Seis anos depois dos acontecimentos que levamos dito, Rodolfo, transportado ao cúmulo da felicidade, esposou sua prima, a bela e angélica Júlia.
Ainda hoje vive sossegado na sua encantadora vivenda de Pé-da-Rocha Nhô José Pedro, rodeado de seus filhos e netos, nos quais feliz se revê, e sendo o esteio dos desgraçados.
António Silvestre, metido em processo, foi condenado a degredo perpétuo para as costas da Guiné.
– Vinguei minha filha e a nossa desonra! – dizia o desditoso velho. – Perdoai-me, meu Deus!
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P. S. – "Nhô José Pedro ou Cenas da Brava", foi dado à estampa em 1867, inserido no livro Contos Singelos (Mafra, Portugal). Tinha então Guilherme Dantas 19 anos. Posteriormente o mesmo conto foi editado no jornal A Voz de Cabo Verde, de 10 de Fevereiro a 16 de Junho de 1913, em 13 números. Depois disso, é a primeira vez que o conto volta a ser publicado.
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
Olá Brito Semedo. Também apresento m/condolências ...
Bom dia,Apraz-me realçar que li, atentamente, o te...
Boa-noite. Que eu saiba, as crónicas do Nhô Djunga...
Tenho também organizado, desde 2000, um outro livro da restante ficção de Dantas, "Contos e Bosquejos", que não consigo editar. Quanto às considerações que faz, só tenho que concordar com a sua leitura, porque correcta.
Continue passando pela "Na Esquina do Tempo" e de um dedo de prosa!