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O romance de Guilherme Augusto da Cunha Dantas (Pé da Rocha, Brava, 25.Junho.1848 – Praia, Santiago, 24.Março.1888), que foi dado à estampa em 2007, foi inicialmente publicado em forma de folhetim em 52 números do jornal "A Voz de Cabo Verde" (Praia, 1911-1919), de 18 de Agosto de 1913 a 10 de Abril de 1915.      

 

Em 1999, ao iniciar em Lisboa as minhas pesquisas sobre a imprensa periódica cabo-verdiana, tomei contacto com a obra ficcional de Guilherme da Cunha Dantas, que desconhecia até então.      

 

Félix Monteiro, nas suas "Páginas Esquecidas de Guilherme Dantas", datadas de Dezembro de 1982[1], chamava atenção para esse escritor patrício esquecido tendo incluído uma amostra da sua produção, em verso e em prosa. Poucos anos mais tarde, Arnaldo França organizava e prefaciava o livro inédito daquele escritor, Poesias, saído em 1996 sob a chancela do Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco.      

 

À medida que fui lendo os textos em prosa de Guilherme Dantas – cinco contos, uma reportagem e um romance – foi tomando corpo a ideia de os divulgar como uma homenagem ao escritor e um serviço à nova geração. Foi assim que surgiu um estudo antropológico e cultural acompanhado dos contos e bosquejos e, de forma autónoma, o romance Memórias dum Pobre Rapaz, concluindo, assim, o projecto de reedição da obra completa de G. Dantas, mais de um século depois da sua morte.      

 

O romance Memórias dum Pobre Rapaz, ao que tudo indica, o segundo de Guilherme Dantas, vem na linha dos seus contos, cujo conteúdo são memórias, vividas ou vivenciadas – portanto, autobiográfico – e ficcionadas.      

 

O comendador Hipólito Olímpio da Costa Andrade, um madeirense, advogado e individualidade de muito prestígio no meio praiense e grande amigo de Guilherme Dantas, escreveu no seu necrológio de 28 de Março de 1888, estar de posse do manuscrito do seu romance Os Embriões "para fazer uma carta preambular ou juízo crítico da obra com que esta devia sair a lume"[2] e de que o autor já tinha publicado o primeiro fascículo[3].      

 

Nas suas Memórias dum Pobre Rapaz, Guilherme Dantas, através da personagem José Roberto, evoca com saudades os anos que passou em Mafra onde frequentou a Escola Real, criada pelo rei D. Pedro V, que seu pai Vitorino Dantas foi instalar e dirigir em finais de 1855 e donde G. Dantas terá saído pelos finais de 1868[4]:      

 

As visitas a Oeiras e a Sintra, os banhos na Ericeira e sobretudo as excursões pela Cêrca do Convento e pela Tapada Real em cujos pomares ele e os colegas patrícios se deliciavam com "tangerinas do tio Bonifácio, nêsperas do sr. Abílio, peras e morangos do António da horta, caseiros de sua magestade". E, também, a última distribuição de prémios a que assistiu: "A vasta e magestosa sala estava resplandecente de espelhos e de flores, de crachás em muitos peitos altaneiros, e de jóias que adornavam numerosas senhoras, tanto da vila como da côrte. [...] Suas magestades, que chegaram pouco depois, dando entrada na sala ao som do hino tocado pela banda marcial postada no corredor. [...] Na noite daquele mesmo dia, meu pobre padrinho [Vitorino Dantas], regressando do jantar de gala do paço, caiu-me nos braços, fulminado por uma congestão cerebral!"      

 

1      

 

O enredo de Memórias dum Pobre Rapaz é o entretecimento de duas histórias românticas de profundo amor e paixão: a primeira, envolvente, do Sr. D. [Dantas], filho do velho professor Vitorino Dantas, que, recém-chegado de Lisboa, visita a ilha natal por três dias, depois de quinze anos de ausência, para pedir em casamento o amor da sua infância, Regina, a prima de grandes olhos verdes; e a segunda, a principal, contida na primeira, é a história ou as memórias de José Roberto, primo do primeiro e afilhado do pai daquele, narrada através da leitura de um manuscrito onde dá conta do seu reencontro em Lisboa com Madalena, o amor da sua infância, depois desta ter sido seduzida e deixada pelo amante que se suicidara.      

 

A intriga do romance é construída e mantida com muito mistério (palavra referida várias vezes no texto) e algum "suspense" – aliás, técnicas usadas no género do folhetim como forma de prender o leitor – que é mantido até o último capítulo, funcionando este como epílogo da história principal, ou melhor, das memórias de José Roberto, onde são feitas as mais surpreendentes revelações.  

 

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A acção da história principal, as Memórias dum Pobre Rapaz, situa-se na segunda metade dos anos oitocentos, sob a influência do terceiro romantismo português, decorre em dois espaços físicos distintos e complementares:      

 

Portugal, mais precisamente, em Lisboa, num perímetro delimitado pelo Cais do Sodré, onde ficava "O Café Ultramarino"; a Calçada da Glória; o Passeio Público (a actual Avenida da Liberdade); a Praça da Alegria, onde moravam tanto José Roberto como Madalena (as personagens principais); a Rua da Escola Politécnica, onde José Roberto frequentava as aulas de Medicina e se localizava o célebre botequim o "Pobre Diabo"; a travessa da Palmeira, o local onde morava o Jeremias; e em Mafra, à roda do Paço e da Escola Real onde decorreu com toda a pompa e circunstância mais uma entrega de prémios, o último do velho professor Vitorino Dantas; e  

 

Cabo Verde, na ilha Brava, descrita como "jardim, paraíso, Sintra de Cabo Verde e formosíssima ilha", local onde tudo havia iniciado e aonde todos se retornaram para realizar os seus sonhos e gozar a paz e a tranquilidade, reconciliados com a vida   "Três dias depois, o vapor Atlântico, da carreira de África Ocidental, conduzia para Cabo Verde os seguintes passageiros: João Mascarenhas Pinto de Azevedo, major reformado, e sua filha, D. Madalena de Azevedo. Jeremias Barbosa Vieira de Vasconcelos, proprietário [...]. Augusto da Silveira, e sua mãe D. Normina Graziela da Silveira. [...] Dr. José Roberto da Silva, facultativo do quadro de saúde da província de Cabo Verde".      

 

Essa bi-espacialidade, Portugal Continental e as Ilhas de Cabo Verde, é também consequência e espelha a realidade bi-pátrida em que viviam os homens das Ilhas dos anos novecentos – situação ambígua de estar e sentir a pátria que fazia com que assumissem ora como sendo Portugal, ora como África ou Ultramar, ora como Cabo Verde ou, ainda, como a sua ilha ou local de nascimento.      

 

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As personagens, as invocações e os costumes são todos de Cabo Verde, melhor, do meio pequeno da ilha Brava, embora movendo-se aquelas num espaço do continente e na capital do reino.      

 

Pode-se considerar que Memórias dum Pobre Rapaz é um romance genuinamente cabo-verdiano cuja acção principal decorre em Portugal Continental, num meio grande, de oportunidades múltiplas para alguns mas também de tentações para outros, os mais fracos, os mais ingénuos ou os mais puros – "Podia a casta e inocente flor da ilha Brava suspeitar sequer o veneno da corrupção na delicada e mimosa flor das estufas deletérias de Lisboa?!...".      

 

Aqui ficam, pois, estas palavras de singela homenagem ao grande escritor e patrício Guilherme Augusto da Cunha Dantas.      

 

Termino citando o comendador Hipólito Olímpio da Costa Andrade, na parte final do necrológio acima referido:      

 

"Que o olvido, esse ingrato esquecimento, não apague a sua memória, e por largos tempos lhe vão os conterrâneos esfolhar piedosamente goivos e saudades sobre a campa amiga!"

 

Título: Memórias dum Pobre Rapaz

Autor: Guilherme Dantas

Organização: M. Brito-Semedo
Edição: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro
Ano de edição: Praia, 2007

 


[1] Félix Monteiro, "Páginas Esquecidas de Guilherme Dantas", in Raízes, Nº 21, de Junho de 1984, pp. 123-186.

[2] Hipólito O. da Costa Andrade, texto publicado no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro e na "Parte não Official" do Boletim Official Nº 14, de 7 de Abril de 1888.

[3] Boletim Official Nº35, de 30 de Agosto de 1884. O anúncio está redigido nos seguintes termos: "Acha-se á venda n'esta imprensa o 1º numero d'esta publicação litterária [Embryões], em folhetos in nº 8 nitido, brochados e com capas. Preço – 240 réis".

[4] Arnaldo França, "Prefácio" a Poesias, de Guilherme Dantas, Praia, 1996, p. 10.

 

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3 comentários

De Ernestina Santos a 27.04.2010 às 00:03

Conheci a poética de Guilherme Dantas através da colectânea editada pelo ICL em 1996, cm organização e prefácio de Arnaldo França.
Os poemas ultra-românticos, enquadrados na época em que viveu, traduzem dolorosamente a vivência de Guilherme Dantas, cuja vida apenas conheceu momentos felizes aquando da sua juventude boémia em Lisboa. O longo prefácio refere o enquadramento histórico em que se situa a vida do malogrado poeta, que faleceu com 38 anos apenas.

Da sua prosa, é com agrado que tomo conhecimento através da pena sábia do amigo Manuel Brito-Semedo , a quem faço a devida vénia por ter encontrado, deste modo, um meio de divulgar a obra literária de escritores cabo-verdianos menos conhecidos.

Agradeço a partilha e as preciosas informações, pois fico mais atenta a estas edições que desapareceram na poeira do tempo e que espero ter a sorte de encontrar, como já me aconteceu com outras, nas feiras de livros que se encontram hoje espalhadas em tantas estações de metro ou noutros locais de grande afluência pública em Lisboa.

De Lawrence Martins a 29.04.2010 às 22:58

Caro amigo Sr. Dr. Manuel Brito. Ha muito anos tenho tentado encontrar livros, sobre varios escritores Caboverdianos menos conhecidos. Me lenbro perfeitamente, aquando o Professor, Brito Semedo, salvo ero, por intermedio do ICL. fez apresentacao de uns textos do Escritor. Guilherme Dantas. Estando fora de Cabo Verde , ha muitos anos, sempre anseio ler, ouvir e ainda ter material para escrever um pouco. E quando encontrei o seu Blog. foi mais uma bencao para mim. Um abraco amigo, desde de Atlanta Ga USA. Lawrence Martins

De Brito-Semedo a 30.04.2010 às 00:46

Caro Amigo e Patrício, Saúdo-o desde à Praia. Fico feliz por saber que parou "Na Esquina" e que, sobretudo, tenha gostado do que aqui se fala: da Literatura e da Cultura da nossa terra! Já na próxima semana farei a apresentação das "Crónicas Esquecidas de Afro" (Pedro Cardoso) e darei início à sua republicação, crónicas essas publicadas na secção "A Manduco...", do Jornal "A Voz de Cabo Verde" (Praia, 1911-1919).

Apareça "Na Esquina", arraste um mocho, instale-se e fique à vontade. Ah, pode trazer a sua bebida!

Um rijo abraço!

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