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Brito-Semedo, 4 Jul 13
Seminário Nazareno, Classe de 1975
Aos Meus Colegas do Seminário,
Manuel Sança e Jorge Maia Lopes
Nessa manhã de quinta-feira de 3 de Julho de 1975, contando apenas 23 anos, cheio de ideal e de projectos, acordei cedo, melhor, não dormi direito a noite toda, tal era a ansiedade que raiasse o dia. Fui enviado de S. Vicente, em missão evangélica, para Santa Catarina de Santiago, a vanguarda política do PAIGC em Cabo Verde, mas isso só descobriria depois de ali estar.
Os acontecimentos tinham ocorrido tão depressa que não tinha tido tempo para pensar nas responsabilidades e nas implicações de uma tal missão, num contexto político de exaltação nacionalista e nas vésperas da independência nacional.
O 25 de Abril de 1974 apanhara-me em S. Vicente frequentando o Seminário Nazareno, juntamente com Jorge Maia e Manuel Sança, tendo os missionários americanos Wood, Henck e Stroud como professores das principais matérias. À pressa, porque o momento político deixava no ar algumas dúvidas e temores quanto ao futuro, decidiu-se antecipar a conclusão do curso, fixando o mês de Março como a data para o seu término.
Estava tudo acertado com o camião que havia de chegar cedo para transportar as nossas coisas, guardadas em grandes caixotes na garagem da Casa da Missão, na Praia, enquanto nós seguiríamos no velho jipão Land-Rover, cedido por empréstimo para esse efeito. Ia montar casa e começar uma nova vida e nova família, cujo primeiro rebento já se anunciava.
Brito-Semedo, 6 Jul 12
Lalela, hoje, acordei de madrugadinha, com aquela sensação de frieza nos ossos que torna mais difícil a gente levantar-se... sabes?
Acordei... olhei para o tecto... vi aquela aranhona que diazá não sai do mesmo lugar e o arrepio foi maior. Esconjurei logo “cred, fidj, spirt santo, amém” e levantei-me ardigado, não fosse aquele homem pel’s’nal de santa cruz querer inrocar-me logo assim pl’a manhã, sem um filho d’parida ter trod’injum.
Abri a janela e olhei para fora. Ainda era meio escuro, alguns candeeiros alumiavam passos de gente que ia à procura de catar a vida e d’alguns parodientes que, de corpo esbodegod, penosamente regressavam das suas flestrias.
O galo de nh’Arcanja deu seu canto, afinadinho como todos os dias. Galo cantador e roscon aquele, e bom galador, que mantinha a capoeira em respeito.
Nh’Arcanja é que nos fornecia os ovos que ao domingo enfeitavam aquele prato de catchupa que mamã dava, sempre acompanhado d’um caneca de café d’chicória. Nos dias d’festa, havia sempre um postinha d’cavala frita d’véspera, com molho de escabeche frio, que dava mais um gostinho.
Costa assim, sol começou a levantar e fechei a janela, numa tentativa, ainda que vã, de o impedir de me apagar as memórias. É que dia claro não serve para sonhar nem acordado. Dia claro é realidade. Paciência.
A aranhona continua no mesmo lugar como se para ela sol não tem serventia para nada.
Até manhã pl’u manhãzinha.
Oeiras 2012-07-03
- Jorge Martins
Brito-Semedo, 21 Nov 11
Para os filhos Any e Ely Brito-Semedo, neste dia muito especial e memorável.
Foi o Toi Cristóvão quem teve a iniciativa, quando estávamos a passear na Praça Nova e lhe dei a notícia. Ele estacou com os olhos arregalados a olhar para mim e disparou:
– E deste-lhe um beijo?! Deste?! Não acredito! Conta, conta como foi! Vá, lá!...
Zarpámos em direcção à Chã de Cemitério, mais o Carlos Ramos, numa grande ansiedade e algazarra. A Mãi Xanda tinha de saber do acontecido e tínhamos motivo para celebrar!
Nesse ano de 1970 tinha feito o exame do 2.º ano como trabalhador estudante (um amigo meu só à terceira é que tinha conseguido passar!), estava a estudar a secção de letras do 5.º ano, continuava empregado na Editora Nazarena, agora a ganhar um pouco mais, e tinha arranjado namorada! Por esta, a Xanda ia pagar!
A promessa vinha de trás, desde o dia em que a minha mãe abordara no largo da Editora o grupinho das minhas amigas lá da Igreja, todas menininhas do Liceu e da Escola Técnica – a Rosely, a Lígia, a Quelinha, a Alcinda, a Argentina, a Eileen, a Olinda – pedindo para, imaginem (!), arranjarem namoro com o filho!
Brito-Semedo, 27 Ago 11
Vista da Cidade do Mindelo, Foto Arquivo Histórico Nacional (IAHN)
O primeiro dia de aulas do Seminário Nazareno, nesses idos de 1972, ficou marcado pelo “raspanete” que apanhámos do Director por nos termos atrasado à sua aula porque nos decidimos ir todos tomar café à esplanada do Hotel Porto Grande, que ficava aí mesmo ao pé. Sendo nós caloiros, desconhecendo, portanto, as regras da casa, fomos levados a isso pelo Zé Aureliano, veterano e mais velho, por simples “pirraça”.
Chegado ao fim desse dia, tinha eu uma pilha de livros para levar para ler durante esse semestre e fazer o resumo. Dentre esses, dois de Dale Carnegie (1888-1955), um autor americano até então desconhecido para mim, que chamaram a minha atenção e foram dos melhores livros que li até hoje, porque de muita utilidade. Intitulavam-se Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas e Como Falar em Público e Influenciar Pessoas.
O livro Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas é um clássico do género, publicado em 1936, com cerca de 50 milhões de obras vendidas em todo o mundo e traduzido para quase todos os idiomas. O livro é voltado para a arte do relacionamento das pessoas, através de técnicas simples, porém, de extrema eficácia. Com experiências vivenciadas pelo próprio autor e outras ocorridas na sua época por pessoas à sua volta, Dale Carnegie ensina a arte dos relacionamentos.
No segundo livro, Como Falar em Público e Influenciar Pessoas, o autor preocupa-se, com dicas simples, em preencher uma necessidade humana que é a de aprender a falar eficazmente e a se preparar para dirigir. Ao mesmo tempo que mostra como melhorar a comunicação com as pessoas, tanto no âmbito profissional como no das relações de amizade ou de amor.
Consumi noites seguidas nessas leituras e deliciei-me, sobretudo, com a preocupação em aprender a “arte das boas maneiras” (relacionamento e bem-falar), características que muito se prezava no Seminário de então.
Ao ler a biografia de Carnegie descobri semelhanças com a minha vida e a dos meus colegas seminaristas, o que me fez simpatizar ainda mais com este autor, que me desafiou no meu projecto de vida. Carnegie provinha de uma família humilde, tendo a sua infância sido vivida num vilarejo, e teve de trabalhar duro com os seus pais numa pequena fazenda. O seu maior interesse era os estudos, tendo chegado a dar aulas de comunicação numa Escola Cristã, contribuindo, assim, para a formação de muitos jovens. Não é de se estranhar, portanto, a escolha desse autor no nosso currículo de estudos.

Igreja do Nazareno do Mindelo onde funciona o Seminário
Tinha eu 20 anos. Provinha de uma família simples e tinha sede em aprender tudo o que me tornasse numa pessoa bem-formada e distinta. Os missionários americanos incentivavam-nos a isso e era prática o Director do Seminário jantar uma vez por semana com os estudantes, como forma de observar e avaliar o seu comportamento social, sobretudo à mesa.
A verdade é que, pela vida fora, passados que são quase 40 anos, esses ensinamentos de Dale Carnegie continuam sendo actuais e pautando o meu comportamento e esses livros, de consulta e releitura constantes.
Quando a minha filha entrou na idade do namoro e começou a sair com os colegas e amigos, aconselhei-a: “– Se os rapazes não te tratarem com delicadeza e correcção como os teus irmãos e o teu pai te tratam, não saias com eles”!
- M. Brito-Semedo
Brito-Semedo, 19 Mai 11
Nos anos 60, feito o exame do 2.º grau, era dzid-e-sabid[1] que o caminho a ser seguido pelos fidjes-de-pobréza[2] era aprender um ofício e preparar-se para uma profissão. Os filhos dos mais remediados iam para o Liceu Gil Eanes e alguns outros, de pais pouco-mais-ou-menos, para a Escola Técnica, havendo, contudo, algumas excepções.
Desses filhos-de-pobréza, as meninas eram tomadas como aprendizas para as casas de corte e costura e oficinas de alfaiataria da Morada. Do Sr. Alberto Madeirense e esposa, D. Conceição, na Rua João Machado; da D. Maria Amélia Miranda, na rua que desce para a Praça Nova; do Sr. Lilim, da Brava, junto do Café Portugal, apenas para me referir aos mais conhecidos. Para além da arte de costurar, as meninas também aprendiam a arte de fazer bolos e de os enfeitar e todos os ornamentos das noivas e acompanhantes – vestidos de noivas e damas de honor, luvas – e flores (em cetim) de noivas, damas, baptizados e funerais.
Os rapazes, esses, iam como aprendizes para as oficinas de artes e ofícios. Verdade seja dita, para eles, as ofertas eram mais diversificadas e para todos os gostos e inclinações, havendo sempre uns mais buldónhes[3] que outros.
As opções eram as oficinas navais de serralheiro-mecânico, torneiro, bate-chapa e soldador, de Wilson, na zona do Dji d’Sal, lá para as bandas da Cova d’ Inglésa, e do Mestre Cunco (Teodoro Gomes, de seu nome), na Pontinha, no outro extremo da cidade; as oficinas de manutenção das máquinas das companhias Millers & Corys e da Shell, para os lados da Craca, junto ao mar, da Fábrica Favorita, na Chã de Cemitério, da Fábrica de Tabaco, no alto do Quartel Militar, junto à Escola Nova, da Padaria Jonas Whanon, no Largo John Miller, e da Central Eléctrica, na Rua Judice Bicker, do outro lado da Pracinha d’ Dotóra; havia as oficinas de funilaria como a Oficina de Jôm Fliner, na Rua Daluz; as oficinas da Escola Salesiana, situadas nas traseiras do Hospital, nas imediações do Lombo e da Ribeira Bote, vocacionadas, sobretudo, para a carpintaria e para a marcenaria; a Fábrica de Calçados, dos irmãos Pereira, na pequena rua para quem sobe o Tribunal, desembocando no largo do Palácio, para além da oficina de sapataria do Damata, que se deslocava em cadeira de roda; a Tipografia S. Vicente, do Sr. Fia, fazendo esquina com esse largo do Palácio, a Editora Nazarena, por trás da Praça Nova, em direcção ao Fonte Cutú, e da Gráfica do Mindelo, do Sr. Ricardino Vasconcelos, no Alto Mira Mar. Para além dessas, havia várias outras oficinas mais pequenas e avulsas de mecânica, ferragem, funileiro, carpintaria, marcenaria e sapataria, nas zonas suburbanas e fraldas da cidade.
Dinheiro podia escassear, mas ocupação era o que não faltava para essa trupida de mnîs fidjes-de-pobréza.
Quando entrei para a Editora Nazarena, em 69, na mesma altura que o Rénas (Renato Cardoso), juntamente com o Carlos (Ramos), o Júlio, o Pedrinho (do Rosário), acabado de sair da tropa, e o Daniel (Medina), havia já a onda de emigração para a Holanda, mas ainda lá estavam a trabalhar o Cecílio, das máquinas de impressão, o Armando, da encadernação, talvez o mais buzód[4]de todos, que emigraria pouco tempo depois, o Lourenço (Lencha), da máquina varityper, aparentemente o mais sorna de todos, mas nem por isso menos buzód, o Eurico, da composição, e o Djô, o guarda, simplório, fazendo vez de m’nine de mandód[5], vítima das muitas pirraças[6] desses rapazes. O Samuel (Barros) acabara de sair para entrar para o Seminário Nazareno e os mais antigos como o Humberto de Nhô Djack já tinham emigrado e outros como o Manel, o mais velho de todos, que morava no caminho para a Ribeira do Julião, na casa mesmo ao lado do Cemitério dezoito-dois-oito (1888)[7], tinham passado para a recém criada Gráfica do Mindelo, no Alto Mira Mar. Mas as muitas estórias e pirraças prevaleciam institucionalizadas e muitas delas eram debitadas vezes sem conta a nós outros mais novos.
Contavam que, certa vez decidiram dar brocklax (um laxante usado para a prisão de ventre, com a forma e a cor de chocolate) ao Djô. Distribuindo-o entre si, como se de chocolate se tratasse, fingiram que o comiam e ofereceram um quadradinho ao Djô. Manhento, este, comeu o seu e pediu mais. Todos ficaram atentos à espera de ver os resultados. Daí a instantes, era um vai-e-vem à casa de banho que, às tantas, já sem forças, o infeliz percebeu que o que lhe tinham dado a comer não era chocolate e foi disparado fazer queixas ao Director. Este, um antigo Administrador Civil de falas sérias, passou um grande raspanete aos engraçadinhos. Durante uma semana, o Djô esteve zangado com o grupo, apesar de todas as tentativas dos rapazes para amenizar a situação.
Retomada a normalidade, Manel, o mais velho do grupo, garantiu que, a ele, é que nunca iriam fazer coisa igual. O Lencha, malandréc, foi quem teve a ideia, a que todos aderiram. Alguns dias depois, meteram broclax numa lata de sumo Compal e pediram a um funileiro que voltasse a soldar tudo direitinho. Sem desconfiar de nada, o Manel bebeu o seu sumo e... foi um Deus nos acuda! Ficou tão sxtremontód[8] dos intestinos e com tantas cólicas, que teve que permanecer dois dias retido em casa, sentód na lata[9], a restabelecer-se. Os próprios rapazes assustaram-se com os efeitos da brincadeira, pois perceberam que tinham exagerado na dose, mas ninguém se descoseu…
- M. Brito-Semedo
[2] Filhos da pobreza, filhos das pessoas com poucos recursos financeiros.
[3] Engenhosos, habilidosos, "gaje capaz de dá na tude cosa".
[4] Abusado, gozão.
[5] Rapaz de recados, paquete.
[6] Troça, gozo, partidas.
[7] O cemitério era assim conhecido devido ao ano em que foi inaugurado, 1888, número esse que até hoje ostenta no cimo do portão de ferro de entrada.
[8] Desarranjado, desorganizado.
[9] Como não havia um sistema de fossas sépticas ou outro de esgoto, as casas de banho tinham, normalmente, uma lata das de tinta ou de petróleo de 20 litros, para onde era feito o despejo e depois transportado à cabeça para para uma sentina, colocada no extremo do “caizinho”, lá para as bandas do Millers & Corys. Daí a expressão “sentá na lata” (sentar na lata).
Brito-Semedo, 26 Ago 10
Hotel Porto Grande, Mindelo . Foto Arquivo Histórico, Praia
Quem é este jovem que, contornando a esquina do tempo e do edifício do Telegraph, neste fim de tarde, caminha na nossa direcção? Poderíamos deduzir que é de S. Vicente, pelo seu ar desembaraçado, mas não da “morada”, pois as suas vestes são simples e calça sandálias de plástico. Poderíamos deduzir que é estudante, porque traz livros e um bloco de notas na mão. Poderíamos, também, deduzir que tem encontro marcado, pela forma decidida e pelo andar ligeiro como caminha em direcção ao Hotel Porto Grande, cruzando a Praça Nova. Talvez pudéssemos, inclusive, concluir que é um frequentador habitual do local, pois fala informalmente ao gerente e aos empregados de mesa que vai encontrando pelo caminho, enquanto se dirige para a ampla esplanada, não antes de encomendar: – Um café e uma mesa, por favor!
Observo-o a dispor as suas coisas numa mesa de canto e a preparar-se para passar algumas horas em leitura atenta. Confesso que conheço este jovem e simpatizo com ele; em breve também o conhecerão. Ele é… enfim, verão quem ele é. Talvez até consigam imaginar no que se tornará – mas estou a falar antes de tempo.
Estamos no ano de 1971. O seu nome é… Brito, Manuel Brito. Sim, sou eu próprio, uma versão jovem de mim, quando tinha dezanove anos. Diria até que somos simultaneamente a mesma pessoa e diferentes um do outro!
_________
Antes de haver o Hotel Porto Grande, inaugurado em finais de 1968, e de o Café-Esplanada albergar essa trupe de jovens estudantes que o procuravam todas as noites, era a Avenida Marginal que os recebia, sobretudo na época dos exames, desembocando dos subúrbios e confluindo ali todas as madrugadas. Era vê-los debaixo dos postes de luz ou passeando pela marginal, concentrados a “empinar” as matérias do 2.º, do 5.º e do 7.º anos.
Custava-me levantar às 04H30 da manhã para estudar e era a Mãi Liza que me vinha acordar quando voltava da Padaria de Matos, mesmo ao pé da porta, do outro lado da estrada, já com a encomenda feita do pão do dia para a venda: pão de trigo, pão de trança, pão de brindeira, pão doce, pão de custarde, pão de milho e barão.
Depois de muita insistência, lá me conseguia fazer levantar e sair pela porta fora, com os meus livros debaixo do braço.
Rumava à Rua de Côco para chamar o Carlos Ramos, meu colega de trabalho e de estudos, que morava mesmo junto ao cruzeiro, na enfiada das casas da Nha Rosa Curcundinha e Nha Antónha d' Solidad. Dali, cortávamos o Largo do Madeiral e seguíamos para a Padaria d' Niclet, situada no topo da Rua da Luz, do outro lado da Drogaria de Gaspar, com a entrada principal para a Pracinha da Igreja. Evoco o cheirinho bom do pon d’ trança (pão de mistura) quentinho a sair do forno, que comprávamos aos pares e levávamos embrulhado em papel pardo, a comer pela rua a quebrar o nosso jejum!
Nessa altura, havia seis padarias a laborar no Mindelo: a Padaria d’ Matos da Fábrica Favorita, em Chã de Cemitério, junto à nossa casa, que, juntamente com a Fábrica Sport, a antiga Padaria d’ Jonas, um pouco mais abaixo, no Largo John Miller, produzia os melhores pães e a melhor bolacha, esta exportada para as outras ilhas; uma terceira, na Rua de Côco, a Padaria d' Marçal, na sequência das casas de Ilas Miranda e Nha Camila d' Café Cantante; a Padaria d’ Antôn Djudjin, de frente para o Largo Dr. Regalla; a Padaria d’ Niclet (de facto Padaria Central), voltada para a Pracinha da Igreja; e, ainda, uma outra, a Padaria de Nhô Antêr, na Rua de Papa Fria, na sequência da Casa de Nhô Roque, vis-a-vis com a mercearia do Nhô Antonin Barót. Dessas padarias, a que mais apreciávamos e nos dava mais jeito era a d' Niclet, pela sua localização privilegiada em relação ao nosso percurso.
O Nhô Niclet (Anacleto Cabral), dono da Padaria Central, era um homem alto e forte, com estrutura de boxer que, via-se, era gente do povo que tinha subido na vida. Nhô Niclet era dono de uma moradia de primeiro andar no Lombo, "Vivenda Irina e Irmãs", lá para os lados do Hospital. Normalmente, vestia calções largos e, aos domingos, trajava camisa e calções brancos com meias altas e sapatos brancos, que contrastavam com a cor da sua pele bastante escura. Quando sorria, o Nhô Niclet mostrava um dente canino de ouro no maxilar superior, que lhe dava alguma graça e um ar de novo-rico.
Conhecia-o e nutria por ele uma certa simpatia porque, quando miúdo, costumava “cercar-lhe a bola” nos jogos de ténis no Club Castilho, em que ele me pagava o serviço com uns trocos, e, sobretudo, porque, nessa altura, ele tinha o carro mais bonito de SonCente, um Mercury verde escuro, com o emblema em cima do capot, o espelho, os frisos dos faróis e das portas, os pára-choques e os tampões das rodas todos niquelados, com os pneus de faixa branca, igualzinho ao do Senhor Governador, diferenciando-se-lhe apenas na cor, dizia-se.
Uma outra coisa que me fazia simpatizar com o homem era a sua determinação férrea. Uma vez, essa padaria pegou fogo e foi um abalo na Morada. Valeu-lhe estar situada junto às Águas do Madeiral e as mulheres que chegavam nessa madrugada para buscar água.
Incansavelmente, carregavam baldes e mais baldes de água nessa hora fatídica, que os homens içavam para o telhado do edifício a tentar apagar o fogo. Da padaria só restaram escombros, mas o Nhô Niclet, com muito esforço, conseguiu recuperá-la aos poucos.
Dizia-se, para quem quisesse ouvir, que a maior ambição do Nhô Niclet era pertencer ao Club do Grémio e à elite local, ambição essa que sempre lhe foi negada, mesmo depois de ter adquirido o Mercury e importado os dois auto-tanques Thames Trader. Dizia-se, inclusive, que essa sua teimosia foi o seu pior erro, pois fê-lo contrair muitas dívidas e perder quase tudo o que tinha conseguido.
– Vamos lá aproveitar o tempo disponível?! É que às 8H00 temos de estar no trabalho! – Pondo, o Carlos Ramos, fim às minhas divagações.
– Manuel Brito-Semedo
Nota: Este post é o número 100!
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
Corrigido no texto. Grato pela correção. Abraço.
Ele nasceu em 1824.
Grato pela partilha destas informações que enrique...
Devido à oportunidade de realizar pesquisas sobre ...
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