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Capacete de 40 Óne, Rito de Passagem

Brito-Semedo, 3 Nov 14

 

Capacete.jpeg

  

 

Para as Verdianas nascidas em 1975

 

 

O capacete é um símbolo do poder usado por homens que a mulher se apropria aos 40 anos e legitima como seu, ser dona da sua própria cabeça, da sua própria vontade.

 

 

Fidjinha m’nina nova

casá q’ ôme de 80 óne.

 

Oi, ôme, Nhô Antôn Dóia,

bocê tró-m êss capacete,

capacete de 40 óne.

 

Bocê tró-m êss capacete,

capacete de 40 óne.

 

Cantiga Popular

 

 

Desde as sociedades primitivas, determinados momentos na vida de seus membros são marcados por cerimónias especiais, conhecidas como ritos de iniciação ou ritos de passagem, que são celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio da sua comunidade.

 

Os ritos de passagem são realizados de diversas formas, dependendo da situação celebrada, que vão desde rituais místicos ou religiosos, passando por assinatura de papéis, às praxes. Os mais comuns são os ritos ligados a nascimentos, formaturas, casamentos e morte.

 

Estas cerimónias, mais do que representarem uma transição particular para o indivíduo, representam igualmente a sua progressiva aceitação e participação na sociedade na qual está inserido, tendo, portanto, tanto o cunho individual quanto o colectivo.

 

Nos ritos de passagem das meninas, que decorrem de aspectos biológicos, assinala-se a primeira menstruação, que marca a sua passagem da infância para a adolescência e a perda da virgindade, o seu iniciar na vida adulta. É por demais evidente que isso acontece em ambientes culturais e antropológicos tornando-os específicos de uma dada sociedade e ou comunidade.

 

Mulher.jpeg

 

Nos anos cinquenta, Fidjinha, uma rapariga da Boa Vista a viver em São Vicente, a despeito de ter tido alguns namorados, chega aos 40 anos virgem e casa-se com Nhô Antôn Dóia, um capitão de cabotagem da Boavista, homem dos seus 80 anos. A virgindade, o "capacete", aos 40 anos é caso raro na sociedade cabo-verdiana, que é muito erotizada, mesmo nessa época dos anos de 1950.

 

No contentamento e na ânsia do casamento, Fidjinha pede ao marido para lhe tirar o “capacete” de 40 anos – Oi, ôme, Nhô Antôn Dóia, / bocê tró-m esse capacete, /capacete de 40 óne. Sabida a estória, isso torna-se motivo de dichote em São Vicente e é posto na bóca de viola, que é como quem diz, “tirado” em cantiga, que logo faz sucesso.

 

Retomando o fio à meada. Aos 40 anos, a mulher tem um novo rito de passagem, que é o da sua transição para a meia-idade.

 

Se no rito de passagem da juventude, perder a virgindade é tirar o cabaço, o capacete ou os “três-vinténs”, como sói dizer-se, colocar na cabeça o capacete, um instrumento de poder usado por homens numa dada sociedade e numa determinada época, é uma forma simbólica de manifestar a conquista do seu poder e da sua liberdade.

 

O capacete é, assim, pois, um símbolo do poder usado por homens de que a mulher se apropria aos 40 anos legitimando-o como seu, ser dona da sua própria cabeça, da sua própria vontade. Filhos criados, estabilidade financeira, viúvas, divorciadas, casadas ou separadas, sem estarem subjugadas aos pais, irmãos ou maridos, a vida (re)começa aos 40, dizem elas!

 

Apesar dos entraves impostos pelo poder patriarcal, as mulheres, inteligentes, imaginativas e “empoderadas”, sempre arranjaram uma forma de se organizar e manifestar a sua insubordinação perante a opressão manifestando-se de forma simbólica e subtil.

 

Explica-se assim a praxe da colocação do capacete de 40 óne pelo dia de aniversário como sendo um rito de passagem que se pode integrar na interpretação simbólica da apropriação do poder pela mulher.

  

 

 

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11 comentários

De Valdemar Pereira a 03.11.2014 às 08:45


As letras da cantiga popular citada não são anedota e não saíram da imaginação de um dos compositores que nos deliciavam com as suas descobertas tão brejeiras (v.g. Ti Goi e Frank Cavaquim).
 Figjinha (operária na Fábrica de Tabacos) e de Nhô Antón Doia que foi capitão de cabotagem. Ambos eram da ilha da Boavista mas viviam no Mindelo e ali se encontraram. Se ela tinha entrado nos quarenta ele não atingia ainda os oitenta, razão pela qual a noticia provocou reola ou brincadeira, nomeadamente, nos arredores da Praça Estrela e da Rua de Praia de Bote.
Se recordar é viver, ganhei hoje uns aninhos razoáveis.
Obrigado ao Manel de Xanda

De Valdemar Pereira a 03.11.2014 às 11:22

Uma gralha (teimosa) não permitiu a aposição de um paràgrafo do comentàrio onde dizia que isto aconteceu nos fins dos anos 40 do século passado.
Se bem me lembro, a Fidjinha tinha o seu domicilio na muito conhecida Rua da Luz (ou nas aproximidades?) e o seu marido era, na altura, o Capitão do navio "Senhor das Areias" popularmente conhecido por "Pé de Chumbo".

De Brito-Semedo a 03.11.2014 às 11:32

Amigo e Colaborador Valdemar Pereira, Grato pelas memórias aqui evocadas que contribuem em muito para um melhor enquadramento da estória do capacete de 40 óne . Quando criança, o Valdemar deve ter chupado muita cabeça de peixe pois a sua memória é fantástica. Parabéns e que os leitores da Esquina tenham muitas mais oportunidades para beneficiar das suas partilhas. Braça da terra.

De zito azevedo a 03.11.2014 às 14:57

Também me lembro bem desta história que, aliás, me foi passada por pessoa muito próxima de Mestre Dóia - o José Pedro Afonso, que era telegrafista do Senhor das Areias...

De Adriano Miranda Lima a 03.11.2014 às 20:10

Eu sou um dos que ficam a conhecer este ritual do capacete e a estória bem real de nha Fidjinha, de que eu nunca tinha ouvido falar. Tudo graças à explicação antropológica do Brito Semedo e a confirmação factual feita pelo Valdemar (Val, para os amigos) que, como diz o primeiro, é uma fonte inesgotável de conhecimentos sobre a nossa vida colectiva.
 Nas ex-colónias, os sobas e os régulos, autoridades tradicionais, tinham a sua autoridade materializada, entre outros símbolos, por um capacete da mesma cor da farda oficial que envergavam, que era de um caqui amarelo. Conheci em Angola, bem no interior do território, uma sobeta, mulher já de idade, que usava a mesma indumentária, com a única diferença de a saia feminina substituir as calças. O exercício da sua autoridade e o respectivo simbolismo exterior eram em tudo iguais aos do homem, pelo que ela não deve ter necessitado de atingir os 40 anos para atingir esse estatuto.

De Brito-Semedo a 03.11.2014 às 20:46

Amigo Adriano Lima, Agradeço o comentário e a partilha da informação sobre o uso do capacete enquanto símbolo de autoridade que, em tudo, corrobora com a minha análise. Um abraço.

De Joaquim ALMEIDA a 04.11.2014 às 11:32

Este blog Esquina do Tempo , é o ùnico no seu género ; consegue penetrar no arquivo de memoria , da memoria de ( alguns teimosos ) que ainda lutam para convencer esta  nova geraçao de nos terra  , que sempre existiu  " estorias " de caruntchinha  de tempe d' caniquinha e também de capacete de 40 one !.. Longa vida a este Blog !..
Um Criol na Frânça ; Morgadinho !..

De Djack a 06.11.2014 às 15:21

Uma delícia, texto e comentários. 


Braça colonial,
Djack

De Anónimo a 11.11.2014 às 12:40

Historia mal contada

De Brito-Semedo a 11.11.2014 às 14:52

Imagino que se refira à estória que foi tirada em cantiga, já que o texto é muito mais do que isso. Se essa estória do "capacete de 40 óne " está mal contada, ajude-nos com a sua versão :-). Um abraço.

De Joaquim ALMEIDA a 13.11.2014 às 10:27

Caro " Anonimo " ; este blog é um arquivo cultural  com portas e janelas abertas para todos aqueles que se lembram  mais ou menos  ( bem contada ou mal contada) , as  estorias  dos tempos daquel ( capacete de 40 one ) !.. Devo dizer  que  o meu amigo "Anonimo " , ficou ( anonimamente ) mal situado no seu comentàrio !.. Morgadinho !..  

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