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Carga frágil. Manusear com cuidado

Brito-Semedo, 2 Mar 18

 

Falucho # 6.jpg

Foto: José Matos Alves

 

 

Homenagem a Nhô João Martins (Jôm Ped de Canja), Capitão do Ildut

 

 

A receber carga, com saída marcada para o Dia Internacional da Língua Materna, Falucho atrasou-se no porto devido ao trafego e arrumação de carga frágil no porão que exigiu cuidado especial no seu manuseio.

 

O antropólogo, professor e filósofo belga Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009) definiu Cultura como um conjunto de sistemas simbólicos: a linguagem, as relações de parentesco, a religião, as relações económicas. Por outras palavras, é um modo não-genético de transmissão existente em uma comunidade contínua, entendendo-se por comunidade uma população que tem a mesma cultura. Pode-se assim dizer que Cultura refere-se ao que quer que seja transmitido não geneticamente, entendendo-se dessa afirmação que essas duas noções, Cultura e Comunidade, estão intimamente ligadas.

 

A noção de Cultura remete-nos para uma outra que é a da Identidade, ou seja, a maneira como os indivíduos e os grupos se revêem e se definem nas suas semelhanças e diferenças relativamente a outros indivíduos e grupos.

 

Este termo Identidade comporta um aspecto subjectivo (a percepção da auto-identificação e da continuidade da própria existência do indivíduo no tempo e no espaço) e um aspecto relacional e colectivo (a percepção de que os outros lhe reconhecem essa identificação e continuidade).

 

O longo processo de formação da nação cabo-verdiana foi determinante para que, muito cedo, surgisse o sentimento e a consciência de uma identidade individual e nacional, como expressão de uma cultura singular que caracteriza o cabo-verdiano como tal e o distingue enquanto povo. É a tomada dessa consciência em relação a outros grupos humanos que o leva a valorizar a sua identidade e a desenvolver uma contestação cultural face ao domínio colonial. A consciência dessa identidade é ainda hoje muito forte no cabo-verdiano, sobremaneira evidente no seu discurso quotidiano e bem assim na coesão cultural das comunidades emigradas.

 

Pode-se dizer que Cabo Verde é um caso sui generis em que o homem/mulher, sendo fruto de caldeamento de raças e de instituições, soube cedo encontrar o seu caminho e a sua identidade cultural. O folclore, a música popular, a língua crioula, o modo particular de falar português e as formas cultas de literatura são os traços que o caracterizam e o individualizam.

 

Sendo a Língua o traço da Cultura que mais ou melhor distingue e caracteriza a identidade de um indivíduo, de uma comunidade ou de um povo, faz-se o seguinte questionamento:

 

Sendo nós, enquanto Povo, um caso de dialéctica étnica e cultural, com uma identidade cultural própria, a cultura crioula, que se manifesta numa individualidade linguística, que política adoptar ou seguir neste particular tendo em conta que somos parte desta Aldeia Global que é hoje o Mundo? – (i) A Língua Cabo-verdiana (falada por um milhão de habitantes) ou o Português (língua de uma comunidade de duzentos e vinte milhões de habitantes)? (ii) A Língua Cabo-verdiana e o Português?

 

Respondidas estas questões fica uma outra: qual o estatuto a ser atribuído a cada uma dessas línguas, a Cabo-verdiana e a Portuguesa?

 

Este não é um teste de múltipla escolha. Antes, quere-se que a resposta ou as respostas sejam um exercício de cidadania activa.

 

Estamos todos de acordo em que o Crioulo, língua materna e de comunicação de todos nós, é um dos traços mais característicos da cultura cabo-verdiana e aquilo que melhor identifica o Cabo-verdiano nas Ilhas e na Diáspora. Contudo, este factor Língua que é um dado assente e inquestionável como traço de união, se não for tratado politicamente de forma ponderada e como algo sensível que é, pode produzir um efeito contrário e pernicioso e ser visto como uma imposição de um sector da comunidade ou, pior, de um grupo.

 

Se se estudar Cabo Verde como uma única Comunidade e Cultura, constata-se que ela é homogénea, com uma única identidade étnica. Contudo, se se for analisar Cabo Verde interculturalmente, verifica-se que ela já apresenta uma diversidade (rica, por sinal) que pode variar de região para região – Barlavento/Sotavento – de ilha para ilha ou mesmo de localidade para localidade (sem se esquecer a importância ou o peso que hoje possa ter as comunidades culturais africanas existentes ou em processo de estabelecimento no País), resultando daí regionalismos culturais e variantes da própria língua cabo-verdiana, classificadas, grosso modo, como variedade de S. Vicente e variedade de Santiago.

 

Por outro lado, se se entender uma região como foco de Identidade Cultural (a sua personalidade, a sua unidade), maior atenção ainda deve ser tida em conta para que outras questões como as desigualdades ou as assimetrias regionais existentes, não sejam usadas como formas de contestação ou exploradas para fomentar o bairrismo latente.

 

Sejamos claros. Expressões como “nós de São Vicente”; ”nós de Santiago”; ”nós do Fogo”, “nós de Santa Catarina”, ou “nós de Ribeira Grande”, indicam a assunção de uma identidade cultural forte que deve ser respeitada e tida em conta na definição das políticas culturais (aqui incluindo a política da língua), sob o risco de haver interpretações de subvalorização de determinada região ou ilha, principalmente quando estas se sentem afastadas do centro do Poder ou de influência na tomada de decisões ou mesmo dos media para se poderem expressar.

 

Em síntese, usar a nossa língua materna em todas as situações, qualquer que seja a variante, e o Português, enquanto língua oficial, de escolaridade e de uma Comunidade de muitos milhões de habitantes, é uma questão de identidade cultural e de exercício de cidadania plena. Cabe, assim, à Sociedade Civil e a cada cidadão usar e defender o seu direito e discutir esta e outras questões sem qualquer tipo de complexo.

 

– Manuel Brito-Semedo

 

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