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Cidadania, Língua e Cultura

Brito-Semedo, 21 Fev 15

 

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O que significa Cultura? Segundo o antropólogo estruturalista C. Lévi-Strauss (1908 – 2009), é um conjunto de sistemas simbólicos: a linguagem, as relações de parentesco, a religião, as relações económicas. Por outras palavras, é um modo não-genético de transmissão existente em uma comunidade contínua, entendendo-se por comunidade uma população que tem a mesma cultura. Pode-se assim dizer que Cultura refere-se ao que quer que seja transmitido não geneticamente, entendendo-se dessa afirmação que essas duas noções, Cultura e Comunidade, estão intimamente ligadas.

 

Estabelecida a noção de Cultura, ela remete-nos para uma outra que é a da Identidade, ou seja, a maneira como os indivíduos e os grupos se revêem e se definem nas suas semelhanças e diferenças relativamente a outros indivíduos e grupos.

 

Este termo Identidade comporta um aspecto subjectivo (a percepção da auto-identificação e da continuidade da própria existência do indivíduo no tempo e no espaço) e um aspecto relacional e colectivo (a percepção de que os outros lhe reconhecem essa identificação e continuidade).

 

O longo processo de formação da nação cabo-verdiana foi determinante para que, muito cedo, surgisse o sentimento e a consciência de uma identidade individual e nacional, como expressão de uma cultura singular que caracteriza o cabo-verdiano como tal e o distingue enquanto povo. É a tomada dessa consciência em relação a outros grupos humanos que o leva a valorizar a sua identidade e a desenvolver uma contestação cultural face ao domínio colonial. A consciência dessa identidade é ainda hoje muito forte no cabo-verdiano, sobremaneira evidente no seu discurso quotidiano e bem assim na coesão cultural das comunidades emigradas.

 

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Pode-se dizer que Cabo Verde é um caso sui generis em que o homem, sendo fruto de caldeamento de raças e de instituições, soube cedo encontrar o seu caminho e a sua identidade cultural. O folclore, a música popular, a língua crioula, o modo particular de falar português e as formas cultas de literatura são os traços que o caracterizam e o individualizam.

 

Penso que estas premissas, Cultura e Identidade, são, na essência, o que realmente necessitamos como o ponto de partida para a nossa reflexão sobre o tema “Cidadania, Língua e Cultura”.

 

Sendo a Língua o traço da Cultura que mais ou melhor distingue e caracteriza a identidade de um indivíduo, de uma comunidade ou de um povo, restrinjo, por limitação de tempo, o foco do nosso debate a este aspecto.

 

Abro a nossa reflexão com um questionamento: sendo nós, enquanto Povo, uma dualidade étnica e cultural, com uma identidade cultural própria, a cultura crioula, que se manifesta numa individualidade linguística, que política adoptar ou seguir neste particular tendo em conta que somos parte desta Aldeia Global que é hoje o Mundo? – (i) A Língua Cabo-verdiana (falada por um milhão de habitantes) ou o Português (língua de uma comunidade de duzentos e vinte milhões de habitantes)? (ii) A Língua Cabo-verdiana e o Português? Respondidas estas questões fica uma outra: qual o estatuto a ser atribuído a cada uma dessas línguas, a Cabo-verdiana e a Portuguesa? Este não é um teste de múltipla escolha. Antes, queremos que a resposta ou as respostas sejam um exercício de cidadania activa.

 

Estamos todos de acordo em que o Crioulo, língua materna e de comunicação de todos nós, é um dos traços mais característicos da cultura cabo-verdiana e aquilo que melhor identifica o Homem Cabo-verdiano nas Ilhas e na Diáspora. Contudo, este factor Língua que é um dado assente e inquestionável como traço de união, se não for tratado politicamente de forma ponderada e como algo sensível que é, pode produzir um efeito contrário e pernicioso e ser visto como uma imposição de um sector da comunidade ou, pior, de um grupo.

 

Vou resumir o meu argumento: se estudarmos Cabo Verde como uma única Comunidade/ Cultura, constamos que ela é homogénea, com uma única identidade étnica. Contudo, se formos analisar Cabo Verde interculturalmente, verificamos que ela já apresenta uma diversidade (rica, por sinal) que pode variar de região para região – Barlavento/Sotavento – de ilha para ilha ou mesmo de localidade para localidade (sem esquecermos a importância ou o peso que hoje possam ter as comunidades culturais africanas existentes ou em estabelecimento no País), resultando daí regionalismos culturais e variantes da própria língua cabo-verdiana, classificadas, grosso modo, como variante de S. Vicente e variante de Santiago.

 

Por outro lado, entendendo uma região como foco de Identidade Cultural (a sua personalidade, a sua unidade), mais atenção ainda deve ser tida em conta para que outras questões como as desigualdades ou assimetrias regionais, eventualmente existentes, não sejam usadas como formas de contestação ou exploradas para fomentar o bairrismo latente.

 

Sejamos claros. Expressões como “nós de S. Vicente”; ”nós de Santiago”; ”nós do Fogo”, “nós de Santa Catarina”, ou “nós de Ribeira Grande”, indicam a assunção de uma identidade cultural forte que deve ser respeitada e tida em conta na definição das políticas culturais (aqui incluindo a política da língua), sob o risco de haver interpretações de sub-valorização de determinada região ou ilha, principalmente quando estas se sentem afastadas do centro do Poder ou de influência na tomada de decisões ou mesmo dos media para se poderem expressar.

 

Em síntese, usar a nossa língua materna em todas as situações, qualquer que seja a variante, e o Português, enquanto língua oficial, de escolaridade e de uma Comunidade de muitos milhões de habitantes, é uma questão de identidade cultural e de exercício de cidadania plena. Cabe, assim, à Sociedade Civil e a cada cidadão usar e defender o seu direito e discutir esta e outras questões sem qualquer tipo de complexo.

 

Manuel Brito-Semedo

 

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8 comentários

De Maria de Fátima Botão Marques a 21.07.2010 às 15:56

Excelente reflexão, Manuel. O mais interessante é que comunicamos em Português, através destes  liames digitais com que a Civilização nos serve: eu deste lado de cá, de onde te leio, de Portugal, no extremo Sudoeste Europeu, do antigo Garb, que já foi de Além e de Aquém, e tu nessa terra não menos rica de saberes e de diversidades, onde a identidade cultural irradia as mesmas mesclas abonadas de alteridades. E quer de um lado, quer de outro, lá estamos nós a procurar definir e clarificar universos que só têm sentido quando se libertam e se fundem, sem preconceitos nem representações sociais, numa mescla fulgurante de saberes e de expressões. Não se trata de nos apropriarmos indevidamente do que é nosso, para timbrarmos a nossa identidade. Trata-se, pura e simplesmente, de aceitarmos as heranças e as memórias que a tecem, numa afirmação partilhada de espaços e de patrimónios. Talvez só assim se vá afirmando naturalmente a riqueza das diversas comunidades, identidades, culturas, tão mais ricas quão mais capazes de enriquecer os seus pares e de se enriquecerem a si mesmas. Obrigada por este espaço de reflexão tão mais interessante por permitir confrontar preocupações e ideias acerca de realidades distantes mas paralelas. 
"Nós do Algarve" e "nós também um pouco de Lisboa", para "vós de S. Vicente" e, quiçá, também um pouco "do Fogo", com um enorme abraço. Adje!

De Brito-Semedo a 22.07.2010 às 01:32

Cara Amiga, Obrigado por teres parado "Na Esquina do Tempo" para uma troca de ideias e de opinião. Este espaço/blog só faz sentido se houver partilha e parece que vamos conseguindo isso, com a vantagem de trazeres um olhar Outro, de uma portuguesa atenta e sensível às diversidades culturais e linguísticas.
Aparece quando quiseres, puxa de um "mocho" (um banco de madeira) sirva-te de um sumo de tamarindo da terra ou de um copo de vinho branco da Chã das Caldeiras (Ilha do Fogo) e participa da conversa!

De Brito-Semedo a 23.02.2015 às 15:18

Cara Amiga, Este post de Julho de 2010 voltou a ser editado, agora pelo Dia Internacional da Língua Materna, por considerar esta reflexão actual e com muita pertinência pelo avivar da discussão sobre a introdução da língua cabo-verdiana no ensino e a sua oficialização, mantendo-se também actual o seu comentário. Grato

De Ernestina Santos a 27.07.2010 às 23:37

Uma interessante e lúcida comunicação sobre o tema Cultura / Identidade como introdução ao debate que tem suscitado paixões acérrimas entre nós, "os de Cabo Verde".

Gostei da abordagem centrada na questão fulcral, que é a cultura comum a todos, intimamente ligada à identidade que assumimos com orgulho no estrangeiro.

Na verdade, é uma questão que será difícil de ser resolvida, que é a adopção de um alfabeto que contente gregos e troianos. Um amigo meu dizia-me que já não vivemos nos tempos em que o poder tomava a decisão e o povo tinha de se calar. Para já, o pelouro da Cultura terá de ser assumido por alguém de carisma bem diplomático para conseguir o consenso sobre esta matéria. Não será um trabalho fácil. Se lembrarmos que em S. Vicente dizemos "no bem fcá", em Santo Antão "no bem fecá", em Santiago "no ta fica" e no Fogo "no ta ficá", é mesmo um desafio decidir qual deve ser a erdacção masi adequada, já não falando no Alupec, alfabeto de grafia tão simplificada. de tantas discussões... Dizia-me outro que as crianças sabem mal o protuguês porque não sabem a sua pr+opria língua e que o crioulo deveria começara  ser ensinado nas escolas. Concordo, mas qual crioulo? Cada ilha ensinará segundo a sua própria fonética? Acrescentava este que éramos obrigados antes a falar português em casa... Quem? A maior parte de nós falava crioulo com os nossos pais em casa e até os alunos que chegavam de Portugal também o falavam. Mas aprendíamos o português primeiro, depois o francês e só a seguir o inglês, pelo que não nos confundíamos na sua aprendizagem. Começar pelo crioulo é uma feliz ideia, só resta saber qual crioulo.

De Brito-Semedo a 28.07.2010 às 00:26

Obrigada, Amiga, pela leitura atenta deste post e pela reflexão sobre o tema, que é complexo e tem sido muito politizado, para não dizer, partidarizado!
Continuo a achar que é imperativo que este debate se faça e com técnicos das áreas da Sociolinguística, da Linguística, da Filologia, de Antropólogos, da Pedagogia e da Didáctica, pois já se perdeu tempo demais, 35 anos!
Estou em crer que tão cedo não se voltará a discutir este assunto por ser polémico e por virem aí as eleições (final de 2010). Depois vem o novo Governo, o tempo para a sua instalação, etc & tal, e só daqui a 1 ano, pelo menos, se voltará a falar da quetão da língua cabo-verdiana! Enfim!...

De Adriano Miranda Lima a 23.02.2015 às 03:07

Na verdade, temos aqui uma excelente reflexão e com peso e medida adequados para retinir na consciência dos que entendem que as decisões desta ordem se operam pela via administrativa (leia-se, política). E também daqueles que julgam que o estudo de um problema desta magnitude e delicadeza se restringe ao viés de uma ou duas disciplinas. Por isso, tem razão o Brito Semedo quando, no seu comentário de resposta a outros intervenientes, diz que  é “imperativo que este debate se faça  com técnicos das áreas da Sociolinguística, da Linguística, da Filologia, de Antropólogos, da Pedagogia e da Didáctica”. Sim, não pode ser exclusivo de uma ou duas áreas da ciência, e muito menos ficar ao arbítrio dos que se presumem detentores de verdades incontornáveis, para não dizer dogmáticas. Isso não é aceitável e é lamentável que se queira impor aos cabo-verdianos soluções forjadas em gabinetes fechados e sem o escrutínio exigível por uma matéria que terá sérias repercussões na vida das populações e, sobretudo, no funcionamento das instituições do Estado, a começar pelo sector da Educação. Além disso, tenho dúvidas de que o crioulo deva constituir base de partida útil para o ensino de outras línguas, muito menos se o dotarmos  de um alfabeto fonético que entrechoca com o das línguas que tencionamos incluir no cardápio do nosso ensino. Neste campo, importará reflectir sobre o passado da nossa aprendizagem linguística e aí encontrar as reais relações de causalidade entre o uso corrente do crioulo e o seu efeito na aprendizagem de línguas estruturadas. Além disso, será conveniente avaliar o efeito que a profusão dos actuais meios audiovisuais está a ter e terá na aprendizagem oral da língua portuguesa. É que há uma diferença abismal entre os tempos em que não havia sequer um aparelho de rádio nas casas e os tempos da actualidade em que o comum das pessoas tem acesso a um aparelho de televisão que o bombardeia continuamente com comunicações de toda a espécie em português, a começar pelas tão procuradas telenovelas faladas em português de Portugal, do Brasil e mesmo de Angola.

Por outro lado, seria dramático não ter em devida conta o universo dos tais 200 milhões de falantes do português no mundo. Uma coisa é a expressão local da nossa identidade cultural e mesmo as expressões culturais diferenciadas dentro do nosso espaço geográfico, outra é o propugnar por aquilo que melhora a nossa ferramenta comunicacional no espaço global dos falantes de português.

De José F Lopes a 23.02.2015 às 09:26

Muitas dúvidas se levantam a propósito desta problemática aqui magistralmente apresentada. Desconfio que seja uma 'vendeta' política contra a língua portuguesa e as variantes do crioulo faladas nas ilhas uma agenda: a erradicação da língua portuguesa do convívio dos cabo-verdianos e a sua substituição pelo crioulo falado em Santiago, como de resto é prova nas televisões, rádios e em tudo o que é empregue o crioulo. Um projecto destes não pode ter apoio da maioria dos cabo-verdianos. Como diz o amigo Adriano Lima deixem o crioulo livre, é em liberdade que ele se porta melhor em vez de o aprisionar e o armadilhar. Ninguém com juízo alguma vez teria pensado (ou pelo menos há 40 anos) que nos metessem nesta aventura que será sem retorno. Mas existe em CV uma elite pretensiosa com mais olhos do que barriga querendo apanhar o céu com as mãos. Há outras prioridade pois estamos a ver um país em franca decomposição social, um país de mãos estendidas que não tem onde cair morto e vem-nos falar da substituição do português pelo crioulo, depois são os portugueses que vão pagar a factura toda. Em que Mundo vive esta gente? Quem vai ensinar isso, com que meios e para que?

De Valdemar Pereira a 23.02.2015 às 14:33

Além de ser ilegal a forma como querem implantar esse trabalho de laboratôrio que não ajuda o entendimento entre a nossa gente, trata-se de uma hecatombe cultural.

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