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No dia 18 de Outubro, Cabo Verde celebra o Dia Nacional da Cultura e das Comunidades, efeméride instituída em homenagem a Eugénio Tavares, poeta da Brava. Este é também o momento certo para lembrar outro escritor bravense, Guilherme Dantas, precursor da ficção cabo-verdiana, cuja obra permaneceu esquecida durante décadas. Juntos, representam duas faces fundadoras da literatura.

 

Guilherme Dantas: O Primeiro Ficcionista

 

Nascido em 1849, no Pé-da-Rocha, Guilherme Dantas estudou na Escola Real de Mafra, em Portugal, onde publicou Contos Singelos (1867). Esta obra, considerada por alguns críticos o primeiro livro de um escritor cabo-verdiano nascido e formado nas ilhas, evoca já paisagens bravenses, mesmo sob a influência do romantismo português. O jovem autor, ainda estudante, mostrava uma precoce ambição literária e a vontade de inscrever Cabo Verde no universo cultural luso-atlântico.

 

De regresso a Cabo Verde, exerceu funções de funcionário público e bibliotecário, colaborando em O Independente, A Imprensa e, postumamente, em A Voz de Cabo Verde. Entre os seus escritos mais relevantes encontram-se Nhô José Pedro ou Cenas da Ilha Brava, evocação da vida popular; Bosquejos dum Passeio ao Interior da Ilha de Santiago, à maneira da Viagem na Minha Terra de Garrett; e o romance Memórias dum Pobre Rapaz (1913–1915, em folhetins; ed. 2007), de forte pendor autobiográfico.

 

A sua morte prematura em 1888 condenou-o ao esquecimento. Só no pós-independência foi resgatado, primeiro por Félix Monteiro e Arnaldo França (1996), depois por Manuel Brito-Semedo, que organizou Memórias dum Pobre Rapaz (2007) e Contos e Bosquejos (2016). Em 2013, a edição crítica de Contos Singelos e Outros Textos preparada por Francisco Topa e Tânia Ardito consolidou a importância de Dantas como fundador da ficção cabo-verdiana, elo entre o romantismo e a literatura insular. Hoje é lido como pioneiro da narrativa insular, um autor que abriu portas e lançou sementes para uma literatura que só muito mais tarde seria reconhecida como nacional. A recuperação da sua obra prova como o arquivo literário cabo-verdiano ainda guarda vozes silenciadas, à espera de novas leituras e de inclusão plena no património cultural do país

 

Eugénio Tavares: O Poeta Imortal da Morna

 

Dezanove anos mais novo, nascido também na Brava em 1867, Eugénio Tavares tornou-se o grande poeta da crioulidade. Poeta, jornalista e dramaturgo, é sobretudo lembrado como autor das Mornas – Cantigas Crioulas (1932), que fixaram no papel uma tradição oral feita de saudade, amor e diáspora.

 

Nos Estados Unidos, colaborou em A Alvorada e escreveu as célebres Cartas para a América, onde denunciou a emigração contratada para São Tomé como “escravatura moderna” e exaltou a liberdade americana. De regresso à Brava, foi jornalista, dinamizador cultural e defensor da dignidade do povo cabo-verdiano, deixando clara a sua vocação cívica.

 

A sua grande inovação foi elevar o crioulo a língua literária. Traduzindo Camões e João de Deus, mostrou que a língua materna dos cabo-verdianos tinha dignidade estética. Para Baltasar Lopes e Gabriel Mariano, foi o primeiro grande poeta crioulo, pioneiro de uma literatura que a geração da Claridade viria a consolidar.

 

É em sua homenagem que se celebra a 18 de Outubro o Dia Nacional da Cultura e das Comunidades, data que sublinha o papel das ilhas e da diáspora na construção da identidade nacional. Recordar Tavares é também celebrar a morna como bandeira cultural de Cabo Verde, hoje reconhecida como Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO.

 

Duas Faces da Mesma Ilha

 

Comparar Dantas e Tavares é compreender duas etapas da literatura cabo-verdiana. Dantas, memorialista e romancista, herdeiro do romantismo português, abriu o caminho da ficção. Figura de transição entre o mundo colonial e a emergência de uma voz nacional, legou páginas que, apesar da forma romântica, já continham os germes de uma consciência cabo-verdiana.

 

Tavares, poeta da morna, projectou a crioulidade e valorizou o crioulo como língua literária. Deu à música e à língua um lugar central, transformando-as em símbolos duradouros da resistência cultural e da afirmação identitária. Entre ambos, abre-se um arco que vai da experiência memorialista e romântica de Dantas à afirmação da crioulidade em Tavares, mostrando como a literatura cabo-verdiana nasceu em diálogo entre tradição europeia e realidade insular.

 

Este duplo legado ajuda-nos a perceber que a literatura cabo-verdiana não surge de forma repentina, mas de um processo histórico feito de avanços e silêncios. Reconhecer Dantas e Tavares é também reconhecer que a identidade cultural do arquipélago resulta da soma de vozes diversas, de estilos distintos e de uma mesma aspiração: dar palavra às ilhas e torná-las audíveis no concerto das nações.

 

Ambos nasceram na Brava, viveram experiências de diáspora e transformaram a memória em literatura. Um representa o fundador esquecido; o outro, o poeta imortal.

 

A Palavra no Coração da Identidade

 

No Dia Nacional da Cultura e das Comunidades, evocamos Eugénio Tavares, mas devemos também recordar Guilherme Dantas. A pequena Brava ofereceu a Cabo Verde dois escritores fundadores: um, que abriu o caminho da ficção e caiu no silêncio; outro, que fez da morna e da crioulidade património colectivo.

 

Juntos, mostram que a literatura cabo-verdiana nasce da insularidade mas fala ao mundo, e que a palavra – escrita ou cantada – permanece no coração da nossa identidade. A Brava, ilha pequena em território, é assim uma ilha-matriz da literatura cabo-verdiana, onde nasceram vozes que ajudaram a fundar o nosso património cultural. A celebração de 18 de Outubro convida, por isso, não só a lembrar o poeta Eugénio Tavares, mas também a reabrir as páginas de Guilherme Dantas, reconhecendo na conjugação destas duas vozes bravenses o verdadeiro início da nossa modernidade literária.

 

Entre a saudade de Dantas e a morna de Tavares, ergue-se a voz de um povo.

 

 

Manuel Brito-Semedo

 

 

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