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“Exorto a todos que celebremos a vida de Baltasar Lopes da Silva, o mais ilustre de todos os cabo-verdianos” – Humberto Cardoso

 

Praia, Assembleia Nacional, 23/04/07

 

 

Sr. Presidente da Assembleia Nacional, senhores membros do Governo, colegas deputados

 

A 28 de Abril de 1974, em São Vicente, quando a multidão se pôs em movimento para festejar a Liberdade anunciada pelo 25 de Abril todos sabiam para onde se dirigir: a casa do Dr. Baltasar Lopes da Silva. A percepção geral é que esse homem incarnava o momento. O momento da Liberdade. Como se toda a sua vida tivesse sido dedicado à conquista da Liberdade. E como se no limiar do mundo novo que se anunciava ele possuía o mapa do caminho a percorrer.

 

Hoje, dia 23 de Abril de 2007, Cabo Verde comemora o centenário do mais ilustre dos seus filhos. Cem anos atrás nascia no Caleijão, na ilha de S. Nicolau, aquele que um dia seria o nosso Dr. Baltasar Lopes da Silva, o nosso Nhô Baltas. O Homem Livre, o Homem culto, o Homem íntegro que durante décadas fez a grande caminhada que o levaria a revelar ao mundo a cabo-verdianidade. Essa nova experiência humana que nos recônditos do império português, no arquipélago de Cabo Verde, emergia vigorosamente não obstante o isolamento, não obstante as fomes, não obstante o medo e a mesquinhez do salazarismo.

 

Hoje, quando se diz que Cabo Verde era nação antes de ser um país independente está-se de facto a referir a esse fenómeno novo, essa consciência de si próprio do povo das ilhas que o génio, a perseverança e a tenacidade de Baltasar e de outros ilustres cabo-verdianos souberam ver, acarinhar e revelar.  

 

Baltasar era um homem livre. Em toda a sua obra não se vê sinais de alguma vez deixar-se prender por alguma ideologia em particular. Numa época em que os intelectuais, particularmente os com vivência em regimes autoritários, abraçavam o marxismo, Nhô Baltas opta por confrontar a realidade sem o conforto enganador de certezas ideológicas. Não acredita em revoluções, prefere usar as armas do Direito para combater os excessos do Poder e os atropelos aos direitos dos cidadãos.

 

Porque não aceitava ideias feitas sejam elas políticas, sociológicas ou outras conseguiu reconhecer o que de novo despontava em Cabo Verde. Evitou posturas reducionistas de qualquer género ou origem: seja de Gilberto Freire, do movimento da negritude ou dos pan-africanistas. Colocou-se no verdadeiro papel do intelectual que se aproxima do seu objecto com humildade e procura conhecê-lo, revelá-lo, pelo que realmente é, e que não cai na tentação de subordinar a realidade vivida a coletes de força ideológicos, forjados em outras paragens e em outros tempos.

 

Por isso, a sua obra persiste para além das conjunturas, para além dos desafios que lhe são colocados por necessidades de poder e de afirmação de indivíduos e de grupos. A autenticidade do que revela sobrevive, não obstante o mundo unidimensional criado por ideologias totalitárias, e é reencontrada sempre que ventos de liberdade individual, intelectual e cultural se fazem sentir. Por isso estudar Baltasar, estudar o Movimento Claridoso é essencial para compreender Cabo Verde, é fundamental para a construção de uma identidade que nos afirme neste mundo globalizado e nos permita reconhecer e conservar certas vantagens comparativas. Vantagens essas centrais para a construção da prosperidade actual e futura do país e de todos os cabo-verdianos. 

 

Baltasar era um homem culto. Com duas licenciaturas, uma em Direito e outra em Filologia Românica tinha os instrumentos para se dedicar ao estudo da realidade sócio cultural e linguística de cabo Verde. A convivência íntima que manteve, décadas a fio, com a Terra e com as suas gentes ficou expressa de forma rica e vibrante na sua prosa e na poesia de Osvaldo Alcântara. A consciência do dever de defender a autenticidade e a originalidade da experiência e da vivência do povo nas ilhas envolveu-o em polémicas públicas sendo a mais célebre a contestação que fez dos escritos de Gilberto Freire acerca de Cabo Verde.

 

Baltasar Lopes da Silva foi o professor de várias gerações de estudantes que, de todas as ilhas, iam a São Vicente estudar no Liceu Gil Eanes. Nenhum dos seus alunos se esquece da sua figura imponente circulando entre as carteiras, a erudição com que abrilhantava as suas aulas, a fina ironia com a qual, por vezes, desafiava os alunos individualmente a esmerarem-se no conhecimento das matérias e o temor reverencial que isso inspirava, mas que se resolvia na óbvia amizade que tinha para com todos. As suas qualidades de pedagogo são evidentes no elevado número de aprovação nas suas turmas e nas possibilidades que abria para os alunos mais avançados de se revelarem e se distinguirem. A todos inspirava pelo rigor do seu pensamento, pelo seu amor feroz pelo conhecimento e pela cultura clássica e humanística e pela sua postura inequívoca de cabo-verdiano pleno, interveniente no seu meio e reconhecido pelo mundo lá fora.

 

Baltasar Lopes da Silva era um homem íntegro. Viveu grande parte da sua vida sob regimes autoritários e totalitários: primeiro o salazarismo e depois o partido único pós-independência. Nunca se deixou vergar. Nunca deixou de intervir. Nunca abandonou a sua terra e as suas gentes. No discurso que fez no dia primeiro de Maio de 1974, do alto do balcão da Câmara Municipal de São Vicente, disse a propósito de sobrevivência em tais regimes: A luta não se trava sempre ostensivamente. Há muitas formas de lutar. Quando não se pode lutar abertamente, por motivo de barreiras e pressões intransponíveis, também é lutar, adoptando uma vida digna, uma vida de interiorização, de procurar estruturar o pensamento para que quando a força bruta passar, podermos ficar inteiros, de cabeça fresca e coração lavado.

 

A efectividade da luta que põe em relevo nessas palavras de grande humildade é reconhecida pela PIDE, a polícia política de Salazar, quando diz numa das múltiplas referencias a Baltasar: O Dr. Baltasar Lopes da Silva é um indivíduo extremamente sagaz e muito culto – dizem que o expoente máximo da actual cultura cabo-verdiana – e mercê disso desfruta de um prestígio que o diviniza aos olhos dos seus patrícios. Tudo ou quase tudo, em Cabo Verde gira sob a sua influência intelectual e à sua orientação se subordinam chefes de serviço e funcionários suplementares da Administração Civil local. Na sua actividade jurídica… igualmente imprime, com habilidade conhecida, o seu cunho de nítido desacordo com as instituições vigentes muito embora de concreto nada ou quase nada se lhe possa apontar

 

Nunca Baltasar fez uso pessoal da extraordinária influência que tinha em Cabo Verde nem se serviu dela para pôr em prática qualquer projecto de poder político. A sua intervenção intensa nas mais diferentes esferas da vida em Cabo Verde foi sempre orientada por uma consciência cívica profunda, suportada por uma grande coragem e animada por um apuradíssimo sentido de justiça. É isso que fazia dele o grande Homem destas ilhas, um mito vivo. Uma figura larger than life como dizem os anglófonos.   

 

Baltasar Lopes da Silva era um democrata. Resistiu ao regime de Salazar anos a fio como testemunha o seu dossier na PIDE, um dossier que abrange o período 1939-1974 e que revela Baltasar como o cabo-verdiano mais vigiado pela polícia política portuguesa. Usou as armas do Direito para combater o regime e atenuar o seu impacto na sociedade e nos indivíduos. A sua intervenção multifacetada na sociedade cabo-verdiana contribuiu extraordinariamente para que, mesmo num ambiente fechado e de repressão como foi o Estado Novo de Salazar, o sentido da caboverdianidade pudesse emergir e amadurecer e, com ele, a consciência da Nação.

 

Baltasar Lopes da Silva um democrata na linha da tradição republicana e liberal que inclui em Cabo Verde, designadamente, Eugénio Tavares, Loff Vasconcelos, Pedro Cardoso e cónego Teixeira, não podia aceitar o regime de partido único imposto logo após a independência nacional. Leão Lopes na sua tese de doutoramento sobre Baltasar Lopes: o homem arquipélago na frente de todas as batalhas fala desses anos: Baltasar viveu os seus últimos anos com uma profunda amargura, desiludido com o exercício do poder da geração que ajudou a formar e por quem abnegadamente também se sacrificou. Os perseguidos pelo novo regime, os cabo-verdianos tidos como anti-revolucionários e que contestavam restrições do sistema político do Partido-Estado em Cabo Verde, encontravam em Baltasar um confidente e algum conforto. Era tudo o que na altura Baltasar poderia oferecer. Todavia não deixou de participar no processo de construção do País, prova da sua disponibilidade política e cívica em benefício da afirmação das ilhas.  

 

É facto que, na sequência das prisões de figuras relevantes no meio mindelense e santantonense em 1977, a sua mulher, Dona Teresa, foi interrogada pela Segurança, a polícia política do regime, e chegou-se a contemplar em certos círculos do regime a possibilidade de prender Baltasar. Mas, como no passado do salazarismo, o prestígio interno e externo dessa figura impar de Cabo Verde dissuadiu as autoridades de realizar esse abominável intento. 

 

Sr. Presidente, senhores membros do Governo, colegas deputados

 

Neste dia em que comemoramos os cem anos do nascimento de Baltasar é importante que coloquemos na devida perspectiva a vida desse grande homem que, sem pedir nada, deu tudo para o seu país. Para que o seu exemplo de homem livre, de intelectual, de integridade e de apego aos ideais democratas e liberais reforce em cada um de nós a determinação para construirmos um Cabo Verde próspero, onde todos vejam salvaguardada a sua Liberdade e dignidade, e inspire a Nação para resistir e insistir na linha da caboverdianade revelada, que nos faz únicos, sem diluições de qualquer espécie.

 

Exorto a todos que celebremos a vida de Baltasar Lopes da Silva, o mais ilustre de todos os cabo-verdianos.  

  

– Humberto Cardoso, Deputado do Movimento para a Democracia

 

 

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