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Brito-Semedo, 4 Set 25

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Somos o resultado de encontros e desencontros, de mares que nos trouxeram sangue e memória, dor e criação. Nós, cabo-verdianos, somos crioulos: herdeiros de múltiplas raízes, mas portadores de uma identidade própria, viva e plural, que só se cumpre no diálogo com o outro.
A provocação da crioulidade
Em Cabo Verde, a identidade é tema de debate desde os dias da independência. No fervor de 1975, a prioridade era romper com a herança colonial e afirmar o país como parte do continente africano. Foi nesse contexto que se cunhou a ideia de uma “reafricanização dos espíritos”, expressão que marcou o discurso político e cultural das décadas seguintes. A intenção era legítima: devolver às ilhas a ligação à África continental, tantas vezes silenciada pela administração colonial.
Mas essa leitura, compreensível na altura, corre o risco de amputar parte essencial da nossa história. Ao privilegiar uma única raiz, desvaloriza-se a natureza verdadeiramente compósita da nossa formação cultural. Defendo, em investigação e em livros como Ilhas Crioulas (2023), que Cabo Verde não é apenas África, nem apenas Europa. É, antes de tudo, crioulo: uma identidade mestiça, resultado de encontros sucessivos e múltiplas influências atlânticas.
O triângulo da nossa identidade
A cabo-verdianidade nasceu de dois momentos fundadores. O primeiro, no século XV, em Ribeira Grande (Cidade Velha), onde colonos portugueses e escravos africanos se encontraram num espaço de fronteira atlântica. Ali se iniciou a mestiçagem biológica e cultural que daria corpo ao ser crioulo.
O segundo momento ocorreu já no século XIX, em Mindelo. O Porto Grande transformou São Vicente num centro de comércio internacional e numa plataforma de circulação de pessoas, ideias e práticas modernas. Se Santiago simboliza a raiz africana, marcada pela escravatura e pelo catolicismo colonial, São Vicente representa a abertura cosmopolita, com forte presença inglesa e influências vindas do mundo inteiro.
Desses encontros não surgiu uma cultura pura, mas sim uma síntese imprevista, um “triângulo identitário” que junta matrizes africanas, europeias e atlânticas. É esse triângulo que explica por que somos, em essência, crioulos: nem uma coisa nem outra, mas algo novo e plural, com marcas próprias de insularidade e diáspora.
Glissant e a filosofia da relação
Esta leitura aproxima-se do pensamento do filósofo martinicano Édouard Glissant. Em Poétique de la Relation (1990), Glissant defendeu que a identidade é sempre relacional, nunca fechada em si. Mais do que mestiçagem, trata-se de um processo criador: do encontro de culturas nasce algo absolutamente novo, imprevisível.
A metáfora que utilizava era a do rizoma: identidades que se expandem em várias direcções, em vez de uma raiz única que procura impor-se. Essa ideia rompe com essencialismos – sejam eurocêntricos ou afrocentrados – e valoriza a diversidade como força criadora. Em Traité du Tout-Monde (1997), ampliou esta visão ao proclamar que o mundo inteiro se encontra em crioulização: uma mundialização entendida como cruzamento permanente de culturas, línguas e modos de vida.
Hoje, num planeta marcado pelas migrações e pela circulação incessante, o pensamento de Glissant ganha nova actualidade. As identidades estão em movimento, hibridizam-se, reinventam-se. Cabo Verde, com a sua história atlântica e a sua diáspora espalhada pelos cinco continentes, é exemplo vivo dessa dinâmica.
Nós, crioulos no Todo-Mundo
Quando afirmo que Cabo Verde é crioulo, não nego a África. Pelo contrário: reconheço-a como raiz essencial, a par da Europa. Mas o resultado dessa mistura é distinto de ambas: uma identidade própria, a cabo-verdianidade.
Essa consciência inscreve-nos numa constelação maior de sociedades crioulas – da Martinica a Nova Orleães, da Reunião à Maurícia – todas marcadas pela experiência da colonização, da escravatura e da migração, mas também pela capacidade de transformar dor em cultura, resistência em criatividade.
É neste ponto que Glissant ilumina o nosso percurso: Cabo Verde é exemplo concreto da sua filosofia da relação e do Tout-Monde, esse “Todo-Mundo” tecido de diversidade e interdependência.
Tornar-se crioulo hoje
Dizer “nós, crioulos” não é apenas uma evocação do passado. É também um programa para o presente. Num tempo em que as identidades voltam a ser usadas como trincheiras — nacionalistas ou exclusivistas — Cabo Verde pode afirmar outra via: a da mestiçagem, da convivência, da pluralidade como valor.
Defender a crioulidade é reconhecer que a nossa humanidade comum não se constrói na pureza mítica, mas no encontro. É aceitar que a identidade não se decreta, não se impõe: constrói-se, todos os dias, no diálogo com o outro.
Ao assumir essa condição, Cabo Verde não só honra a sua história como também projecta um futuro possível para outras nações, sobretudo aquelas atravessadas por migrações, diásporas e diversidades internas. A crioulidade cabo-verdiana mostra que é possível transformar vulnerabilidade em força, insularidade em abertura, mistura em criação. Esta é a mensagem que podemos oferecer ao mundo: pequenas ilhas podem conter grandes universos.
Nós, crioulos, trazemos ao mundo essa lição: que a diversidade é força criadora e a relação é destino. Cabo Verde, pequeno no mapa, é grande no exemplo universal de que ser crioulo é, afinal, ser humano na pluralidade.
– Manuel Brito-Semedo
Esquecer!? Ninguém esquece…
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