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Homenagem ao marinheiro-trovador Manel d’Novas de Alegria

 

 

Bo ta camba na sul

A mi cu odjo na bo,

Bo ta dobra mar azul

Pa bem queceme e'ss nha dor.

 

Navio Novas d'Alegria

Bo levame nha mae querida

Pum terra desconhecida

Em busca di felicidade.

 

Oh porto grande di Senegal

Abri c'amor bo portal

Bo recebe ess imagem santa

C'amor tambem ti ta bai.

 

Triteza'm ca sabé tchoral

Alegria'm ca sabé cantal

A mim'm sabé djam flabo tudo

Ness morna cheio di sodade.

 

– Morna ‘Novas d’Alegria’, Amândio Cabral, 1959

 

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Tenho na palma da minha mão uma moeda de aço niquelado de 20$00, de 1994, série navios, que traz no reverso o Novas de Alegria, o que me leva a evocar dois momentos marcantes da história das ilhas – a fome de 1946-48 e a emigração para Dacar nos finais de 1950-60 – e duas figuras cujos nomes e funções ficariam ligados ao scooner – o artista americano nazareno Rockwell Smith  Brank (1917 – 2007) e o marinheiro-trovador Manuel de Jesus Lopes (1938 – 2009), vulgo Manel d’Novas.

 

Fome 1946-1948

 

Duas das piores fomes de Cabo Verde de que se tem memória ocorreram em 1941-1943 e 1946-1948, matando cerca de 45.000 pessoas, descendo a população do arquipélago para 140.000 habitantes. Santiago perdeu 65% de sua população (Amaral, História Geral de Cabo Verde, Vol. I, Lisboa, 1991). É nesse contexto que centenas de cabo-verdianos aceitaram contratos de trabalho nas plantações de cacau em São Tomé e Príncipe e Angola.

 

A Missão da Igreja do Nazareno de Cabo Verde era, na altura, dirigida pelo Rev. Everette Howard, primeiro missionário americano chegado a Cabo Verde (1936-1951), momento em que a sede da Igreja nos Estados Unidos da América passou a enviar bens para ajudar a igreja nas ilhas.

 

Nesse ano de 1947, a Igreja do Nazareno constrói, na cidade da Praia, a Igreja Memorial Maude Chapman, obra que contribuiu para atenuar a situação difícil em que muitas famílias viviam na capital da província, posto que ofereceu oportunidade de trabalho a uma significativa mão-de-obra local.

 

O que, por exemplo, não aconteceria em 1949, também na Praia, quando pela total falta de assistência centenas de pessoas morreram tragicamente enquanto aguardavam pela distribuição de refeições quentes e de algum donativo.

 

 ‘Novas de Alegria’ e 'Boas Novas’

 

Rockwell Smith  Brank (19.12.1917 –  4.03.2007), artista americano que ficou conhecido por suas pinturas a óleo sobre tela representando cenas marítimas e costeiras, adquiriu em Inglaterra um scooner de dois mastros por cinco mil libras esterlinas [5.000 £ em 1952 equivale hoje a 147.000 £, à volta de 19.000 contos CV] que, trazido para Cabo Verde em 1952, foi oferecido à Missão da Igreja do Nazareno que o registou com o nome de ’Novas de Alegria’.

 

A atestar a estadia de Rockwell Smith  Brank em Cabo Verde, a Igreja do Nazareno do Mindelo, inaugurada em 1955, tem exibida, em destaque para quem entra, uma paisagem exuberante da Ribeira do Paul em Santo Antão, pintada por esse artista.

 

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Em contacto realizado com o Museu da Baleia em New Bedford, ficou-se a saber que constam no seu arquivo três desenhos a lápis do ‘Novas de Alegria’, feitos e oferecidos, em 1948, para os Missionários de Cabo Verde da Igreja do Nazareno, por Benjamim T. Dobson (1898 – 1956), engenheiro americano desenhador de navios de carga e iates.

 

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De lembrar que, por essa ocasião, a Igreja do Nazareno já era possuidora de uma pequena embarcação registada como ‘Boas Novas’ – provavelmente o primeiro navio a motor e vela – comprada pelo Rev. Everette Howard a um dinamarquês em São Vicente, em 1950, para o transporte interilhas e, em especial, para o encontro nacional das Igrejas, as Assembleias Distritais anuais.

 

Não tendo vocação para armador e face às despesas acumuladas de gestão, a Missão da Igreja do Nazareno viria a vender os dois navios a armadores locais: ‘Boas Novas”, a Nhô Bedjo [José Eugénio] Rodrigues, proprietário de café dos Mosteiros, que, em homenagem à mulher, lhe mudou o nome para "Ana José", vindo a afundar-se tempos depois no Fonti Bila em São Filipe; e ‘Novas de Alegria’, vendido em 1956 a Luizinho Ourives [Luís Lopes de Almeida], empresário da Praia.

 

Em 1974 o Novas de Alegria foi vendido para o estrangeiro e, segundo informações ainda por confirmar, é hoje barco-museu, eventualmente com outro nome, num dos portos da Holanda.

 

Com o produto da venda do 'Novas de Alegria' foi adquirido o terreno usado para construir o Lar dos Estudantes do Seminário, no seguimento da Igreja do Nazareno, entre 1969/1970.

 

Marinheiro-trovador Manel d’Novas

 

Valentim Lucas, Vula (n. 1931 –) foi escolhido para ser o primeiro capitão do ’Novas de Alegria’, um scooner que viria a navegar nos mares das ilhas fazendo ligação com a Costa de África de 1952 a 1974 e a desempenhar um papel importante, sobretudo nos anos sessenta, na imigração clandestina para Dacar.

 

Manuel de Jesus Lopes (Santo Antão, 24.12.1938 – São Vicente, 28.09.2009), considerado um dos mais importantes trovadores de Cabo Verde, trabalhou por vários anos como moço de câmara e marinheiro no ‘Novas de Alegria’, levado pelas mãos do Capitão Alberto Pancrácio Lopes (n. 1925 –), seu primo, passando, por isso, a ser conhecido popularmente como Manel d’Novas.

 

Foi no ‘Novas de Alegria’ que Manel d’Novas diz ter aprendido a tocar guitarra com a rapaziada que lá trabalhava”. 

 

‘Pinote na vapor’, a “minha 1.ª composição 1957/1958”, “feita a bordo do iate Novas de Alegria”, conforme anotado de próprio punho por Manuel d’Novas, marca o início de um percurso de cerca de cinquenta anos, com mais de 150 composições entre mornas, coladeiras, samba-canção e marchas de carnaval.

 

PINÔTE NA VAPOR

 

Ó nosso baia di Porto Grande      

Cordá bô oiá

Plá manhã já manchê

Ca têm trabόi pam’ trabaiá

Si ca ê puli calçada

Nês ruinha de Mindelo

 

Um ca têm dinhêr

Quê pam bai tê Holanda

Bsia trabόi na vapôr

Na nôs terra um ca têm valor

 

Vapôr di sul, vapôr di norte

Ta entrá dia e nôte

Bisnize ês ca ta dtchá

Nem embarcód ês ca ta levá

Flόd dia 15 tem um tanka

Deus ta dóne um batanka

 

Dá pinôt na vapôr

S’ês firmam’ ê nha sorte

Má tambê sês ca firmam

Oi Furtim ca ê nha morte

 

Trauteio a morna enquanto atiro a minha moeda de 20$00 para o ar. Agarro-a e ponho-a no bolso. Afinal, ela guarda ‘novas de [grande] alegria’.

 

–  Manuel Brito-Semedo

 

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4 comentários

De Manuel Amante a 25.07.2021 às 03:08


Muito tenho aprendido nesta rede. Nas ocasiões mais inesperadas como este teu post sobre o “Novas de Alegria” e a sua íntima ligação ao Rockwell Smith Brank. Mas deixa-me dizer-te que mesmo nas conversas mais fortuitas contigo, e sempre de passagem,  encontro aspectos enriquecedores.  
Mal chegado a New York, em 1984 e sedento de tudo saía aos fins de semana para conhecer Manhattan, onde sempre procurei morar. Encantavam me as feiras dominicais (flea market) do west side. Num Domingo encontro, entre muitas bugigangas e utensílios, uma reprodução de uma pintura em guache, mal emoldurada, que me fazia lembrar as palmeiras e beira mar da Cidade Velha. Diálogo estabelecido, preço tolerável para os baixos proventos que tínhamos e vou para casa feliz com o quadro debaixo do braço. Descubro mais tarde que é do Rockwell, uma reprodução dos finais dos anos 40, compro livro e revistas, reúno recortes de jornais e apaixono-me pelos quadros dos faluchos, veleiros, desastres, ventania e mau tempo nas Caraíbas. Mas bem lá no fundo sempre sentia que suava de todas elas o odor de Cabo Verde e a nossa incontornável relação com o mar. Longe, muito longe, de saber que um dia Rockwell se teria condoído deste nosso resiliente povo. O quadro está hoje em casa de um familiar apesar das muitas voltas e paragens que dei por este mundo. Tem agora, por tua causa e do “ Novas de Alegria”, muito mais valor.

De Anónimo a 25.07.2021 às 17:36

Comentário apagado.

De Brito-Semedo a 25.07.2021 às 17:38

Caro Amigo Amante da Rosa,
Desde miúdo que me impressionou na Igreja do Nazareno da Praça Nova essa pintura do Mr. Rockwell Brank do Vale do Paul em lugar de destaque por detrás do púlpito. Poucas informações tinha desse artista senão uma referênica vaga de que teria sido feita por um milionário americano que ofereceu um barco à Igreja do Nazareno. 
Posteriormente, nem como Seminarista Nazareno (1971-1974), ao estudar a História da Igreja do Nazareno, os nossos professores/missonários pouco ou nada falaram nossa história local/nacional.
Muito recentemente, houve um clic que me levou a querer informar-me mais sobre o assunto fazendo disso um pequeno projecto de pesquisa.
Nada como falar com quem sabe e viveu essa época tendo conviveu com o Sr. Rockwell de porta para dentro, o Rev. António Nobre Leite, o último dessa plêiada dos primerios formados no Seminário Nazareno de Cabo Verde (1953-1956), hoje a  viver nos EUA.
O Sr. Rockwell chegou a viver no sótão da casa dos Nobre Leite, sita no Canal do Tribunal, durante o tempo que esteve em São Vicente (1950-1955). Aliás, Mr. Rockwell Brank foi quem lhe confecionou o bolo de casamento.
Aquando da efectivação da venda do 'Novas de Alegria' ao Sr. Luisinho Ourives foi o Pastor estudante António Leite quem representou o armador, o Pastor Francisco Xavier Frreira em representação da Igreja do Nazareno.
O resto da história e as conexões estão no texto ;-).

De Daniel Monteiro a 25.07.2021 às 18:45

Meu caro Brito Semedo, apenas para dizer um 'bem haja' pela tua tenacidade intrépida que insiste em trazer-nos à memória acontecimentos outros desta nossa história tão rica, seja ela religiosa, secular ou outra, a qual para infelicidade nossa continua a não ser contada com a mestria e a frequência necessárias. Continue, por favor!
 Agradecido com admiração.
Respeito!

De Brito-Semedo a 25.07.2021 às 19:54

Nha Bro.

 

Efésios, capítulo 4, versículo 11: “E Ele mesmo deu alguns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores”;


I Coríntios, capítulo 7, versículo 20: “Cada um fique na vocação que foi chamado”;

Romanos, capítulo 12, versículo 7: “Se o teu dom é servir, sirva”.


Braça rija.


 

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