Recomendações de consulta
Assuntos culturais
Bibliotecas Virtuais
Blogues Parceiros
Documentários
Instituições Ensino Superior
Para mais consulta
Esquina do tempo por Brito-Semedo © 2010 - 2015 ♦ Design de Teresa Alves
Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Magazine Cultural a divulgar Cabo Verde desde 2010
Brito-Semedo, 2 Ago 21
Homenagem ao marinheiro-trovador Manel d’Novas de Alegria
Bo ta camba na sul
A mi cu odjo na bo,
Bo ta dobra mar azul
Pa bem queceme e'ss nha dor.
Navio Novas d'Alegria
Bo levame nha mae querida
Pum terra desconhecida
Em busca di felicidade.
Oh porto grande di Senegal
Abri c'amor bo portal
Bo recebe ess imagem santa
C'amor tambem ti ta bai.
Triteza'm ca sabé tchoral
Alegria'm ca sabé cantal
A mim'm sabé djam flabo tudo
Ness morna cheio di sodade.
– Morna ‘Novas d’Alegria’, Amândio Cabral, 1959
Tenho na palma da minha mão uma moeda de aço niquelado de 20$00, de 1994, série navios, que traz no reverso o Novas de Alegria, o que me leva a evocar dois momentos marcantes da história das ilhas – a fome de 1946-48 e a emigração para Dacar nos finais de 1950-60 – e duas figuras cujos nomes e funções ficariam ligados ao scooner – o artista americano nazareno Rockwell Smith Brank (1917 – 2007) e o marinheiro-trovador Manuel de Jesus Lopes (1938 – 2009), vulgo Manel d’Novas.
Fome 1946-1948
Duas das piores fomes de Cabo Verde de que se tem memória ocorreram em 1941-1943 e 1946-1948, matando cerca de 45.000 pessoas, descendo a população do arquipélago para 140.000 habitantes. Santiago perdeu 65% de sua população (Amaral, História Geral de Cabo Verde, Vol. I, Lisboa, 1991). É nesse contexto que centenas de cabo-verdianos aceitaram contratos de trabalho nas plantações de cacau em São Tomé e Príncipe e Angola.
A Missão da Igreja do Nazareno de Cabo Verde era, na altura, dirigida pelo Rev. Everette Howard, primeiro missionário americano chegado a Cabo Verde (1936-1951), momento em que a sede da Igreja nos Estados Unidos da América passou a enviar bens para ajudar a igreja nas ilhas.
Nesse ano de 1947, a Igreja do Nazareno constrói, na cidade da Praia, a Igreja Memorial Maude Chapman, obra que contribuiu para atenuar a situação difícil em que muitas famílias viviam na capital da província, posto que ofereceu oportunidade de trabalho a uma significativa mão-de-obra local.
O que, por exemplo, não aconteceria em 1949, também na Praia, quando pela total falta de assistência centenas de pessoas morreram tragicamente enquanto aguardavam pela distribuição de refeições quentes e de algum donativo.
‘Novas de Alegria’ e 'Boas Novas’
Rockwell Smith Brank (19.12.1917 – 4.03.2007), artista americano que ficou conhecido por suas pinturas a óleo sobre tela representando cenas marítimas e costeiras, adquiriu em Inglaterra um scooner de dois mastros por cinco mil libras esterlinas [5.000 £ em 1952 equivale hoje a 147.000 £, à volta de 19.000 contos CV] que, trazido para Cabo Verde em 1952, foi oferecido à Missão da Igreja do Nazareno que o registou com o nome de ’Novas de Alegria’.
A atestar a estadia de Rockwell Smith Brank em Cabo Verde, a Igreja do Nazareno do Mindelo, inaugurada em 1955, tem exibida, em destaque para quem entra, uma paisagem exuberante da Ribeira do Paul em Santo Antão, pintada por esse artista.
Em contacto realizado com o Museu da Baleia em New Bedford, ficou-se a saber que constam no seu arquivo três desenhos a lápis do ‘Novas de Alegria’, feitos e oferecidos, em 1948, para os Missionários de Cabo Verde da Igreja do Nazareno, por Benjamim T. Dobson (1898 – 1956), engenheiro americano desenhador de navios de carga e iates.
De lembrar que, por essa ocasião, a Igreja do Nazareno já era possuidora de uma pequena embarcação registada como ‘Boas Novas’ – provavelmente o primeiro navio a motor e vela – comprada pelo Rev. Everette Howard a um dinamarquês em São Vicente, em 1950, para o transporte interilhas e, em especial, para o encontro nacional das Igrejas, as Assembleias Distritais anuais.
Não tendo vocação para armador e face às despesas acumuladas de gestão, a Missão da Igreja do Nazareno viria a vender os dois navios a armadores locais: ‘Boas Novas”, a Nhô Bedjo [José Eugénio] Rodrigues, proprietário de café dos Mosteiros, que, em homenagem à mulher, lhe mudou o nome para "Ana José", vindo a afundar-se tempos depois no Fonti Bila em São Filipe; e ‘Novas de Alegria’, vendido em 1956 a Luizinho Ourives [Luís Lopes de Almeida], empresário da Praia.
Em 1974 o Novas de Alegria foi vendido para o estrangeiro e, segundo informações ainda por confirmar, é hoje barco-museu, eventualmente com outro nome, num dos portos da Holanda.
Com o produto da venda do 'Novas de Alegria' foi adquirido o terreno usado para construir o Lar dos Estudantes do Seminário, no seguimento da Igreja do Nazareno, entre 1969/1970.
Marinheiro-trovador Manel d’Novas
Valentim Lucas, Vula (n. 1931 –) foi escolhido para ser o primeiro capitão do ’Novas de Alegria’, um scooner que viria a navegar nos mares das ilhas fazendo ligação com a Costa de África de 1952 a 1974 e a desempenhar um papel importante, sobretudo nos anos sessenta, na imigração clandestina para Dacar.
Manuel de Jesus Lopes (Santo Antão, 24.12.1938 – São Vicente, 28.09.2009), considerado um dos mais importantes trovadores de Cabo Verde, trabalhou por vários anos como moço de câmara e marinheiro no ‘Novas de Alegria’, levado pelas mãos do Capitão Alberto Pancrácio Lopes (n. 1925 –), seu primo, passando, por isso, a ser conhecido popularmente como Manel d’Novas.
Foi no ‘Novas de Alegria’ que Manel d’Novas diz ter aprendido a “tocar guitarra com a rapaziada que lá trabalhava”.
‘Pinote na vapor’, a “minha 1.ª composição 1957/1958”, “feita a bordo do iate Novas de Alegria”, conforme anotado de próprio punho por Manuel d’Novas, marca o início de um percurso de cerca de cinquenta anos, com mais de 150 composições entre mornas, coladeiras, samba-canção e marchas de carnaval.
PINÔTE NA VAPOR
Ó nosso baia di Porto Grande
Cordá bô oiá
Plá manhã já manchê
Ca têm trabόi pam’ trabaiá
Si ca ê puli calçada
Nês ruinha de Mindelo
Um ca têm dinhêr
Quê pam bai tê Holanda
Bsia trabόi na vapôr
Na nôs terra um ca têm valor
Vapôr di sul, vapôr di norte
Ta entrá dia e nôte
Bisnize ês ca ta dtchá
Nem embarcód ês ca ta levá
Flόd dia 15 tem um tanka
Deus ta dóne um batanka
Dá pinôt na vapôr
S’ês firmam’ ê nha sorte
Má tambê sês ca firmam
Oi Furtim ca ê nha morte
Trauteio a morna enquanto atiro a minha moeda de 20$00 para o ar. Agarro-a e ponho-a no bolso. Afinal, ela guarda ‘novas de [grande] alegria’.
– Manuel Brito-Semedo
Nha Bro.
Efésios, capítulo 4, versículo 11: “E Ele mesmo deu alguns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores”;
I Coríntios, capítulo 7, versículo 20: “Cada um fique na vocação que foi chamado”;
Romanos, capítulo 12, versículo 7: “Se o teu dom é servir, sirva”.
Braça rija.
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
Cape Verdeans are the real Jews those white “Jewis...
Que pena! As cadeiras de baloiço são famosas e não...
Boa tarde Na minha infância e juventude eu conheci...
Muito tenho aprendido nesta rede. Nas ocasiões mais inesperadas como este teu post sobre o “Novas de Alegria” e a sua íntima ligação ao Rockwell Smith Brank. Mas deixa-me dizer-te que mesmo nas conversas mais fortuitas contigo, e sempre de passagem, encontro aspectos enriquecedores.
Mal chegado a New York, em 1984 e sedento de tudo saía aos fins de semana para conhecer Manhattan, onde sempre procurei morar. Encantavam me as feiras dominicais (flea market) do west side. Num Domingo encontro, entre muitas bugigangas e utensílios, uma reprodução de uma pintura em guache, mal emoldurada, que me fazia lembrar as palmeiras e beira mar da Cidade Velha. Diálogo estabelecido, preço tolerável para os baixos proventos que tínhamos e vou para casa feliz com o quadro debaixo do braço. Descubro mais tarde que é do Rockwell, uma reprodução dos finais dos anos 40, compro livro e revistas, reúno recortes de jornais e apaixono-me pelos quadros dos faluchos, veleiros, desastres, ventania e mau tempo nas Caraíbas. Mas bem lá no fundo sempre sentia que suava de todas elas o odor de Cabo Verde e a nossa incontornável relação com o mar. Longe, muito longe, de saber que um dia Rockwell se teria condoído deste nosso resiliente povo. O quadro está hoje em casa de um familiar apesar das muitas voltas e paragens que dei por este mundo. Tem agora, por tua causa e do “ Novas de Alegria”, muito mais valor.