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O País que se Conta à Mesa

Brito-Semedo, 13 Set 25

 

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Um coisinha sabe pá Lorena Semedo Brito Neves, Minha Sobrinha Chef

 

 

A mesa cabo-verdiana não é apenas lugar de refeição: é palco de memória, afecto e resistência.

 

Entre pratos e rituais, cada ilha imprime a sua marca própria e, em simultâneo, contribui para o mosaico plural da identidade nacional.

 

Tal como se lê em Ilhas Crioulas (2023), comer em Cabo Verde é narrar histórias, preservar identidades e projectar futuros – um património vivo que une as ilhas pela diversidade dos seus sabores.

 

O acto de comer, em Cabo Verde, ultrapassa a simples satisfação da fome. É um gesto de cultura e de comunhão, onde a aparente simplicidade dos ingredientes se transforma em partilha e afirmação perante o mundo. À volta da mesa, o cabo-verdiano reconhece-se, reencontra raízes e reafirma pertença, dentro e fora das ilhas.

 

Raízes históricas

 

Desde cedo, Santiago desempenhou papel central nas relações com a costa da Guiné, atraindo comerciantes portugueses e espanhóis. Como explica Maria Manuel Torrão (1995),

“Em Santiago interceptavam-se dois circuitos comerciais: um que trazia da costa da Guiné para a ilha mercadorias africanas, dentre as quais os tão desejados escravos; o outro, com o objectivo de aí os ir buscar, transportava da Península Ibérica para Santiago variadíssimos produtos, desde os alimentares aos tecidos, passando por uma série de objectos utilitários, para uso quotidiano da população europeia aí residente” (p. 38).

 

A ocupação de novos espaços geográficos implicou também a transferência de regimes alimentares. Portugueses importavam trigo, vinho e azeite; africanos trazidos da Guiné mantinham o consumo de milho e arroz. Assim, a mesa cabo-verdiana do século XV já espelhava desigualdades sociais, mas também uma criatividade adaptativa que, ao longo dos séculos, daria origem à cozinha crioula.

 

Logo nos primórdios, a mesa foi espaço de encontros e contrastes: entre o pão de trigo e o xerém, o vinho de uva e o grogue de cana. E, como lembrava Eça de Queirós, “Diz-me o que comes, dir-te-ei o que és”.

 

Sabores que contam ilhas

 

A gastronomia do arquipélago é território afectivo. O cheiro do milho a assar na brasa, a frescura do peixe acabado de pescar ou o doce aroma da papaia madura evocam lembranças de infância e momentos de convívio.

 

Do milho e grogue de Santo Antão ao ritmo calmo do Maio, da festa mindelense às solenidades de São Nicolau, da simplicidade atlântica do Sal e da Boa Vista às doçarias bravenses, cada ilha guarda receitas que contam histórias de um povo.

 

Em Santo Antão, a doçaria é um poema de frutas tropicais, licores e bolos caseiros. O grogue sela brindes e aquece conversas, enquanto milho e tubérculos sustentam pratos robustos.

 

Já em São Vicente, a vida pulsa ao ritmo do mar e da festa: caldeiradas, polvo guisado, linguiça mindelense e arroz de marisco acompanham música e convívio, das festas de São João ao Carnaval, das noites da Baía das Gatas ao Kavala Fresk, onde a cavala se reinventa em receitas criativas.

 

Se em São Nicolau domina a solenidade, tradição e rigor marcam os dias grandes, com sete pratos obrigatórios – do modje d’ capód à sanfana de cabrito – servidos ao som do bódje d’ rabeca.

 

No Sal e na Boa Vista, a simplicidade prevalece: peixe grelhado, polvo guisado e doces de papaia fundem-se com a paisagem atlântica de areia e mar.

 

Prolongando essa simplicidade atlântica, o Maio acrescenta serenidade e sabor: peixe fresco, arroz de coco, feijão congo e doces caseiros animam festas comunitárias, num cenário onde as antigas salinas e as tartarugas marinhas convivem com a hospitalidade das gentes e o compasso vagaroso da ilha.

 

Em contraste, Santiago reúne terra, música e mesa. A cachupa, o xerém e o feijão cozinham-se ao batuque, onde comer e dançar são actos indissociáveis.

 

No Fogo, café de altitude e queijo artesanal são símbolos maiores, ao lado de cachupas e carnes temperadas. A Festa da Bandeira entrelaça gastronomia, música e religiosidade.

 

A Brava acrescenta intimidade: caldos, peixe fresco, doces de papaia e mornas à capela fazem da mesa encontro entre sabor e música.

 

E na diáspora, a mesa prolonga-se em Boston, Lisboa, Paris ou Roterdão, onde a cachupa, o grogue ou o café do Fogo se transformam em rituais de pertença e memória, transmitidos de geração em geração.

 

Cuidar e resistir

 

Na cozinha cabo-verdiana, preparar alimentos é também um acto de generosidade e de cuidado. Comer bem é resistir à monotonia industrial e abraçar a diversidade de milho, peixe, frutas tropicais, café, queijo e grogue.

 

Ao privilegiar produtos locais e sazonais, preservam-se saberes tradicionais e fortalece-se a economia das comunidades. Cada prato é gesto de amor, mas também afirmação de soberania alimentar.

 

A contemporaneidade traz novos desafios: o turismo, a circulação de chefs e a globalização introduzem pratos híbridos, reinventando receitas tradicionais. A mesa crioula mostra, assim, que tradição e inovação podem conviver, desde que a raiz identitária não se perca.

 

Dessa resistência à homogeneização e dessa abertura à inovação nasce uma consciência patrimonial: perceber que a mesa não é apenas consumo, mas legado a preservar e renovar.

 

Património vivo

 

Mais do que cenário de consumo, a mesa cabo-verdiana é património vivo. É espaço de transmissão de saberes, de reforço de laços sociais e de afirmação identitária.

 

A gastronomia pode ser motor de desenvolvimento sustentável, ao valorizar produção local, saberes ancestrais e novas gerações de cozinheiros.

 

Entre a panela ao lume e a música que ecoa na rua, a mesa cabo-verdiana guarda a alma de um povo. Cuidá-la é garantir que, no arquipélago e na diáspora, continuaremos a brindar juntos – com sabor, memória e esperança.

 

 

Manuel Brito-Semedo

 

 

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