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Esquina do tempo por Brito-Semedo © 2010 - 2015 ♦ Design de Teresa Alves
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Magazine Cultural a divulgar Cabo Verde desde 2010
Brito-Semedo, 1 Jun 15
Foto Jorge Martins
Hoje é o Dia Mundial de todas as Crianças.
Xalina personifica, aqui, todas as Meninas e Meninos que um dia foram vítimas de um Mundo que não as/os soube proteger ontem, hoje e não se sabe até quando.
Aquele dia de 15 Julho, entrou aziago, tchon de Soncente, cheio de gente pelas ruas, calor e mosca, padiola de Cambra passava, ta bá, ta bem, antes de canto de galo e se um fid'parida não desse acordo de si, sem qualquer respeito, pegavam na mão e no pé, monteavam e levavam pa Dezoito Dois Oito, onde cambavam na cova e voltavam para apanhar mais uma lingada, como carvão. Era ôrde de Sr. Administrador, ôrde que vinha de Lisboa, para evitar mais doença, para matar mais que fome, ainda...
Dia manxia, dia cambava, nem tchuva nem vapor, nem trabói nem c'mida. Era ver povo correndo para ir tomar um c'mida d'onj, que alguma alma caridosa estivesse a dar, para pagar promessa depois de algum pecado maior e assim aliviar consciência, que depressa se via fundo d'panela de papa ou de uma catchupa de cevada, que até era preciso chamar pliça d'estaçon para por orde na fila.
Foto Jorge Martins
Xalina, tinha 13 anos e era terceira de Nhô Antone d'Aninha e sua mulher Nhâ Xala e única filha féma. Foi primeiro Toy, depois Izê'N'tone, só depois, Xalina e Luluzin, codê, que veio já tarde, onze anos depois de Xalina, já Nhâ Xala estava sem esperança e como ela contava, Luluzin era filho de fusca. E ria-se, mostrando a boca motcha já quase sem dentes, que depois tapava com as mãos magras e enrugadas de mulher já entrada na idade, de vida de trabói de campo e de tudo o que desse para ganhar mais uns tostões para ajudar na lida de casa.
Nhô Antone, nesse dia veio fusco e com toda a sua fusquesa, fez aquele codê, que passou a ser como filho dos irmãos mais velhos, principalmente de Xalina que tomou ele como filho mesmo e carregava o menino para todo o lado, mesmo quando tinha de ir ajudar Nhâ Xala em qualquer trabói.
Nhô Antone trabalhava numa casa comercial na Morada, onde fazia de tudo. Puxava Zorra, fazia caixotes e embrulhos, ia levantar mercadoria na Alfândega, levar mercadoria para embarcar pr'as'Ilha e mais que patrão mandasse, até ir dar catchorr banho lá no quintal da casa.
Em Julho, quando Patrão ia de féria para Pé de Verde, Nhô Antone e Nhâ Xala ia na frente, para darem um jeito na casa e fazer consertos que fosse necessário e ficavam lá para fazer servintia, cuidar de bichos, ligar motor para dar luz em casa depois de Sol cambar, catar lenha, trabalho mais pesado.
Nhâ Xala como era criada de dentro, ficava com incumbência fazer comida, de lavar, lizar roupa, limpeza da casa e mais tudo o que fosse preciso para que Srª. não se preocupasse pois era de saúde fraca e precisava de mudar de ares. Pé de Verde tinha sempre ar fresco e na Morada era impossível com calor e falta de chuva.
Xalina ficava a tomar conta de casa, para ordear cozinha e tratar de tud casta de assunto de casa enquanto Toy e Izê'N'tone trabalhavam na estiva d'Port.
Dia 15 de Julho, Xalina saiu para Morada, com Luluzin na d'jerga para ir fazer umas compras para casa. Tinha de passar no Plurin de verdura e no Plurin de Peixe para comprar coisas para ordear jantar quando os irmãos chegassem, ter jantar ordeód.
No caminho deixou Luluzim na casa de Nhâ Das Dores, para poder ir mais leve, pois tinha de trazer compra e precisava de se despachar. Luluzim ficou a brincar com Djosa, neto de Nhâ Das Dores, que era da mesma idade.
Assim, Xalina tomou caminho de Morada, desde d'riba de Tchan D'sumter onde seus pais tinham levantado uma casinha que aos poucos foram compondo, para abrigar família com um quintalinho onde havia um tchuck, cinco galinhas e um galo para criação.
Nhâ Xala, que tinha nascido em Stº. Antão, tinha também uma hortinha, onde ela punha sempre salsa, coentro, páia texera, belgata e outros matos de chá, plantados, para aliviar a vida e que ela ia vendendo. Vendia também inxunda d'galinha, uma receita que ela tinha aprendido com a mãe e que curava tud casta de maleita e ainda servia, também, para dar Nhô Antone no corpo quando ele vinha escaderód nos dias em que chegava mercadoria de Alfândega, que fazia mais de dez viagens de zorra, de alfândega para Rua de Matijin e voltar, mais ainda arrumar tudo como o Sr. Guarda Livros gostava, para que depois fosse mais fácil fazer envio para as'Ilha.
Xalina desceu, passou Fabrica d'Matos, Salina e foi primeiro comprar duas cavalas e depois, passou no plurim d'virdura e comprou milho e feijão, para deixar comida feita para o jantar de todos e almoço que Toy e Izê'N'tone levavam para trabalho. Ela e Luluzin ficavam com o que restasse para passarem o dia. Jantar é que tinha de ser feito de fresco, pois os irmão vinham cansados e com fome, sempre.
Depois de fazer as compras, passou lá na montra daquela loja e ficou lá, tã, a olhar para aquelas fazendas bonitas e uma data de coisas que ela nem sabia para o que serviam. Foi quando dono da loja meteu conversa e disse para ela entrar... inocência... ela entrou e ficou a olhar sem saber qual mais bonito. E o cheiro... Nunca tinha cheirado nada assim.
Nem se importou com a mão que lhe percorria o corpo, que se insinuava pelos peitos, rijos, de menina. De repente, aquela dor que lhe trespassou o ventre e o sorriso alarve que mostrava um dente de ouro e que sofregamente, lhe procurou os lábios. Desmaiou. Acordou e sentiu a dor que lhe queimava o baixo-ventre e sentiu as mãos húmidas e só ali viu o sangue, que lhe saía do corpo, ainda, e abraçou a sua vergonha. Chorou, chorou até que a noite veio para lhe cobrir a vergonha. Caminhou...
Xalina nunca mais voltou para ir buscar Luluzin nem fazer o jantar para os irmão Toy e Izê'N'tone. Uma semana depois, um corpo deu à costa na Cova D'Inglesa... corpo de Xalina. Vergonha levou-a até ponta de Cais. Desapareceu no azul dos seus sonhos de menina. Deixou seu corpo, que já não lhe servia para nada, sem cor, sem brilho.
Oeiras, 2015/06/01
D'Joe
PS – Este texto é pura ficção, mas poderia ser realidade. Qualquer semelhança com a realidade pode ser que seja coincidência, ou até não.
Esquecer!? Ninguém esquece…
Suspende fragmentos na câmara escura, que se revelam à luz da lembrança...
Olá Brito Semedo. Também apresento m/condolências ...
Bom dia,Apraz-me realçar que li, atentamente, o te...
Boa-noite. Que eu saiba, as crónicas do Nhô Djunga...
Conhecia o mágico do "preto e branco" que agora - deliciosamente - põe o preto no branco.
Bravo, D'Joe, por este conto de sabor bem nosso que, mesmo ficção, faz-nos pensar de muitas realidades de diazà e... talvez ainda.