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Foto Jorge Martins, Oeiras, 26.Dez.2012

 

 

Lalela, hoje lembrei daquele primeiro bói que dancei com Rôsinha, lá na D'jacô.

 

Nessa semana, Port Grande tinha dado bom troc, sem maroce... foi uma trupida de vapor, para sul e para norte e ainda, dois paquetes, um de Blue Star e outro de Royal Mail. Foi trabalhar que nem contratado de Roça de Son'tmê, mas tinha dado para tirar mais dum mês, ainda por cima tinha conseguido fazer um bom bisniss, com um garrafão de 5lt de grog que troquei com um tripulante de Royal Mail, por seis sabonetes, duas latas de pó de talco e um frasco de água de cheiro, daquela marca Yardley e ainda uma caixa de manteiga inglesa, de bordo.


Sr. Titino de registo civil, não, que ficou logo com quatro sabonetes e uma lata de talco para a sua mulher, Dona Inês, e com metade da caixa de manteiga, que era para ele dividir com seus irmãos, Sr. Dadal e Sr. Humberto... a outra metade, vendi avulso logo ali na Rua d'Lisboa sem dificuldade.

 

Guardei logo um sabonete daqueles, para uma conquista que eu já andava debaixo d'olho diazá e a outra lata de talco, vendi a uma Srª, aquela casada com aquele mondrong que era Dr. de Porto, já nem me lembra o nome. Aquele outro sabonete levei para Manzinha e Mana Tanha, que elas gostavam de tomar o seu banho de domingo só com sabonete de bordo. No resto, era lavar com sabão de barra lá de fábrica de sabão, de Sr. Leça.

 

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 Foto Jorge Martins, Oeiras, 26.Dez.2012

 

 

A água de cheiro, guardei para mim, com muito custo, pois Sr. Titino ficou chateado comigo... mas, Lalela, aquele estava destinado li pâ mim... era meu passaporte para quel conquista, que diazá eu estava a rondar, sem coragem para chegar diante dela. Tu sabes, trabalhador d'estiva não era propriamente gente de luxo e com essa quantidade de mocinhos de liceu que andavam por Soncente, todos luxentos nos seus fatinhos, com manias d'inglês, cheios de conversa e cabelo colado de brilhantina... as menininhas já nem olhavam para um pobre de Cristo... era vê-los de noite a rondar fraldas, de mom na bolse, grupinhos de três e quatro, cheios de ar mas que não aguentavam um costa de mom travesod naquelas carinhas limbidas.


Nesse sábado, depois de largar de trabalho, passei logo no plurim de pexe e comprei cinco cavalas bem gordinhas e dei um salto no plurim d'virdura para comprar pão d´caldeira para um caldo d´pexe. Depois, passei no Sr. Antonin Carr para comprar um bom lanho de toucinho. De gentileza, por um negócio que lhe arranjei, Sr. Antonin ofereceu-me um bocado de osso de perna de porco, com um bocadinho de carne que Manzinha salgou, para dar um entregoste numa boa panela de catchupa.


Passei na farmácia e comprei uma latinha de Mentholatum que diazá Manzinha andava a pedir por causa de resfriado de Djidjê de Mana Tanha, que andava sempre atacadinho coitado, sempre com aquela pieira... que o haveria de levar, ainda inocente, coitadinho.


Tomei caminho de casa, para R´bera Bote mas ainda passei lá na mercearia de Nha Rosa para comprar umas bolachas de 1/2 tostões e umas pirinhas das Ilha para levar aos meninos. Sabes, Mana Tanha, desde que pariu Djidjê que ficou com aquela fraqueza que era dificil ela conseguir tirar dois dias seguidos de trabalho, por isso, eu e Manzinha é que tocávamos o barco. Mas até hoje, não tenho brincadeira com Mana Tanha.


Foi ela que me criou, mesmo que, na força de pescoçada e castigo, mas quando era preciso ela é que brigava por mim, quando algum rapazinho mais taludo vinha com manias. Ela era boa a passar calaca e dava eles com costa no chão num intrim. Depois, de noite, quando medo trancava em mim, ela abraçava-me e embalava meu sono, por isso, faço tudo por ela e pelos meninos, enquanto tiver força no corpo para trabalhar.


De caminho dei fala no Toy d'Ninha para combinar paródia de mais tarde.


Quando ia chegando naquela embocadura de nossa casa, já Manzinha saiu em mim feito cadela parida – que eu já vinha tarde e comida estava na panela, que comida ficava passado de ponto, mais uma data de coisas – e nem quando mostrei toda aquelas compras que eu trazia ela amainou. Só depois de mostrar aquele sabonete inglês e a latinha de mentholatum então é que ela parou e disse:

 

– Ah nhâ fidje motche, Deus guardob pa dret, mas despacha-te já que comida fria não tem serventia.


No fim da tarde, tomei meu bom banho com folha de eucalipto para ficar com pele lustrosa, vesti minha calça de dril cinzento escuro e aquela camisinha de saquinha que Manzinha tinha lavado de véspera e posto a corar. De tanta alvura que eu até parecia mais preto ainda.


Passei um bocado de banha de cheiro na cabeça, para disfarçar cabelo cuzcuz e tomei um bom banho daquele perfume, que Manzinha disso logo que cheiro tinha chegado logo na morada, antes de eu sair de casa.


Saí e fui ter com Toy d'Ninha e descemos rumo a Salina para ir ter com Mochin que já tinha preparado umas bafas para gente fazer uma boquinha,antes de ir para o baile lá na D'jacô.
Tudinha, de nhô Jon Joana, já me tinha dado fala que minha conquista ia para o baile, mas acompanhada da sua mãe, Nhã Rosa. Por isso eu tinha passado lá na mercearia dela, para mostrar que era homem de trabalho e amigo de família, acabando por perder mais tempo, a fazer conversa de ocasião para dar ela de azeite... sabes, dizem que quem quer conquistar filha, tem de conquistar primeiro a mãe.


Entramos no baile já estavam muitos pares a dançar, aquelas modas da época. Fomos primeiro até ao bar, ver o resto da rapaziada e beber mais um groguinho para ganhar coragem para a conquista.


Tirei Tudinha para dançar, como já tínhamos combinado antes e fomos dançar perto de nha Rosa que estava sentada toda composta com a filha ao lado, Rôsinha, minha perdição que até pisei Tudinha duas vezes que ela me disse, quase já bô squecê dança... que eu nem sabia mais para onde olhar.


Aproximei-me de nha Rosa e cumprimentei e cumprimentei Rôsinha e fiquei de conversa de conveniência a falar cuntina, a dizer que era homem de traboi, que graças a Deus traboi não me faltava que eu era de serventia para qualquer coisa, desde que fosse traboi honrado... sabes conversa para fazer sala.


Quando música começou de novo, pedi licença para dançar com Rôsinha. Nha Rosa mediu-me de alto a baixo, uma, duas vezes e depois disse... na respeito e compostura de gente de bem, que minha Rôsinha é menina de família, não é qualquer um.

 

Fomos para sala, ficamos lá no meio para não ficar perto de nha Rosa e começamos a dançar, até que nhô Jon Joana, pai de Tudinha, puxou aquela arcada... daquela morna de B.Leza, "Eclipse", que tinha saído... rapaz, Rôsinha chegou-se a mim e encostou a cabeça no meu ombro e sorrindo com aquele sorriso só dela, que mais ninguém tem, até hoje, disse... bô perfume ta tcherê sabe... respirou fundo, fechou os olhos e mornamos, bem mornado que até música acabou que nem demos fé... só quando nha Rosa apareceu e a arrancou dos meus braços e disse:


– Falta de respeito... amanhã falo com a tua mãe, depois da missa, que isto não vai ficar assim... foi saindo, rebocando Rôsinha atras dela, eu sem fala.


Nessa noite já não fechei olho, a pensar no que Manzinha iria pensar de mim, mais, o que nha Rosa iria contar...


Naquel bói d'sobd lá na D'jacô, começou esse amor até hoje... que nem terra depois de morte vai apagar.

 

Ainda hoje, passados estes anos todos, quando Rôsinha me diz com aquele ar de abuso - bo ta tcherê sab, rapaz parece que fico com menos uns 30 anos... fico capaz de dançar, com ela no peito, um bói inteiro.


Rôsinha ainda guarda aquele sabonete até hoje, de recordação. Tomou banho com ele na noite de nosso casamento depois, guardou na sua mala onde guarda também, seu vestido de noiva... até hoje.


Oeiras, 2015/04/30
D'Joe

 

______

Obrigado, D'Joe. Sem bô sabê, êss foi nha prénda d'óne. I q prénda! – Lalela

 

 

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6 comentários

De Suzana Abreu a 01.05.2015 às 11:30

Adorei este relato do Jorge Martins, que me transportou para dentro da história. A sua descrição do lugar, do tempo e do que lhe ia na alma, fez de mim quase uma testemunha ocular. Quando acabei de ler, recordei-me das ocasiões em que outros meninos também "cheios de ar", atrevidos, arranjados e bem penteados,  me iam atirar pedrinhas à janela à noite para conversar, dizer coisas bonitas e mostrar-se. Eu tinha um ar de quinze anos e achava-lhes graça, mas ainda era muito novita para me interessar no sexo oposto.  


Às vezes, a insistência das pedrinhas na vidraça aborreciam-me, queria escrever as minhas coisas em sossego, as minhas impressões de Soncente, desta terra nova, tão agreste e tão bela, diferente em tudo a que estava habituada. Enchi páginas de diários, à noite, enquanto ouvia a BBC, com as minhas conversas com os montes secos e o mar azul e  também com o Monte Cara, que achava ser um Deus silencioso, o guardador milenar das gentes, da terra e do céu. Via-o do terraço da minha casa e gostava de contemplar a placidez do seu sono, apostando que tinha um olho fechado e o outro aberto, estava só a dormitar...


Eram sempre dois meninos. Um deles deu-se a (re)conhecer e reencontrei-o no Facebook, 30 e tal anos depois, o outro nunca mais vi. Obrigada Jorge, por teres acordado, com o teu relato, estas belas e doces recordações. 


Nunca sabemos até onde as palavras escritas por um bom contador nos podem levar. É essa a beleza e o poder de um belo texto. Grata pela "viagem"', amigo. Beijinhos e parabéns.

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    Um belíssimo texto este da senhora Sónia Jardim. T...

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    Interessante que isto me lembra um estória de quel...

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    Muito obrigado, m descobri hoje e m aprende txeu!!...

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