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Esquina do tempo por Brito-Semedo © 2010 - 2015 ♦ Design de Teresa Alves
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Brito-Semedo, 22 Jan 14
- Adriano Miranda Lima, Portugal
Quando um município celebra a sua mais importante efeméride – o dia do seu nascimento – fá-lo sempre sob os auspícios de melhores tempos vindouros. A comemoração do dia 22 de Janeiro é o momento em que o povo de S. Vicente sai à rua, incorpora a procissão, e com a hagiografia do seu santo padroeiro acredita esconjurar os males deste mundo cruel e injusto, triste e sombrio. Mas no fundo da alma vai acesa a chama da esperança, ardendo em velas imaginárias portadas por mãos crédulas. Porque todos sabem que a cidade do Mindelo foi ungida ainda no berço pela graça de tempos novos que iriam alterar o estagnado panorama das nossas ilhas, e desde então S. Vicente e a sua cidade arvoraram o estandarte da mudança e brandiram o archote da exaltação da vida. O corpo e a alma souberam ser criativos na simbiótica expressão da alegria e do optimismo, quando o porto e o carvão garantiam trabalho a todos os braços e a panela fumegava em todos os lares, a ponto de o “Manê Jom” se dar ao luxo de “engordá gote na gemada”, como exprimiu Sérgio Frusoni na sua célebre morna “Tempe de Caniquinha” (1), divulgada pela voz portentosa do Bana com um título diferente.
Mas os enganos da política e os atropelos da história conjugam-se numa terrível ciclotimia para cortar a linha da fortuna, e o “Tempe de Caniquinha” invade ruas, praças, becos, adro de igreja, escarmentando a vida dos mais deserdados da sorte. É esse tempo de “caniquinha na mon” que a expressão poética de Frusoni elege, ipsis verbis, como epítome da pobreza e título da sua morna – “Tempe de Caniquinha”. É a mesma morna que o Bana canta e divulga com alguma deturpação da letra original, talvez devido a propósitos de arranjo final, consagrando-a assim com um outro título - “Um vez Soncent era sabe”- título este que, se provido de singeleza sonora de fácil apreensão popular, não integra, todavia, a síntese poética bem conseguida no título original, onde é unívoca a relação entre o signo e o significado.
A morna considerada um hino à ilha de S. Vicente é, pois, e tanto quanto sei, da autoria exclusiva de Sérgio Frusoni, letra e música, como conta Valdemar Pereira, um dos reiniciadores do teatro em S. Vicente. Ele refere-o precisamente no seu livro O Teatro é uma Paixão, A Vida é uma Emoção, que contém inclusivamente fotocópia do texto original da letra dactilografado com a máquina que o poeta utilizava no seu trabalho profissional na ITALCABLE. Valdemar Pereira fala do que sabe porque conviveu com ele e recebeu directamente das suas mãos textos para as representações cénicas que empreendeu no Castilho e depois no Eden Park, além de toda a empatia e adesão intelectual do saudoso vate.
Calha mesmo a propósito referir o facto de alguém ter dito, recentemente, no facebook, que essa morna é da autoria de Sérgio Frusoni e B. Leza, desconhecendo-se o fundamento da afirmação, que só o próprio poderá esclarecer convenientemente. A verdade é que este episódio suscitou muitas reacções, sobretudo entre a família Frusoni, tantas são as provas em contrário, alicerçadas no conhecimento directo dos factos. E entre as pessoas mais bem capacitadas para o desmentido está o filho do B. Leza, Vladimir Cruz, porque ele, sim, é certamente o mais insuspeito de todos. Ninguém ignora que B. Leza é grande demais para necessitar que se lhe atribua o que não é dele, e decerto que deve ter-se sentido desconfortável quando soube, lá onde estiver, da atribuída co-autoria.
Voltemos à comemoração do Dia do Município, no próximo dia 22 de Janeiro, que coincide com o dia da celebração de São Vicente, padroeiro da ilha. Não é preciso um olhar muito detido para se constatar que, infelizmente, o triste fadário do “Tempe de Caniquinha” é um fenómeno recorrente na nossa terra, e ei-lo de novo, hoje em dia, a assombrar sectores da população mindelense, os mesmos de sempre, marcados pelo estigma da pobreza. Marginalização política da ilha, erros de estratégia governamental, insuficiente dinamismo empresarial local, crise económica mundial, qual desses ardis mais nos trava a roda da fortuna? Não sei responder, mas faço votos por que a vontade e o engenho dos políticos se juntem às preces piedosas ao Senhor S. Vicente para afastar para longe a maldição do “Tempe de Caniquinha”.
Num breve parêntese, ouvi há tempos contar que Sérgio Frusoni, que também se dedicava à pintura, restaurou a imagem de S. Vicente e na sua base deixou a assinatura: S. Frusoni. Tal serviu para alimentar o anedotário típico mindelense, contando-se que algumas pessoas mais ingénuas olhavam para a imagem no altar na Igreja e supunham estar em presença de “São Frusoni”, isto é, um santo com esse nome. Há quem pense que o espírito de humor do autor do restauro lhe deu para deixar ao léu propositadamente essa ambiguidade, mas vá-se lá saber se foi ou não.
Sérgio Frusoni era um verdadeiro “fidje de Soncente”, tal como ele se define num dos seus poemas (“Presentaçon”), e nenhum como ele utilizou tão magistralmente o crioulo da sua ilha para celebrar artisticamente a alegria e a irreverência do seu povo ou chorar a dor das suas penas. A sua mundividência poética e existencial é uma incarnação perfeita da nossa alma sofrida, festiva e indómita, corajosa e criativa. Depositário inigualável de retalhos dessa alma, com a poesia de Frusoni revisitamo-nos para nunca esquecermos o que somos e jamais perdermos o significado sublime do que é ser mindelense.
Por isso, não admira se alguém vir S. Frusoni na procissão de 22 de Janeiro, no meio do povo anónimo, atrás do padroeiro S. Vicente, em passada reverente e silenciosa pelas ruas do Mindelo. Se de argila ou carne e osso, pouco importará a áurea porque no nosso imaginário Sérgio Frusoni vive e viverá para sempre. Ou não fosse a alma do poeta tão imortal como a do santo.
________
(1) O termo canequinha refere-se ao recipiente em que os pobres recolhem as moedas das esmolas. Eu antes o confundia com “canecadinha”, rua a que se deu este nome, por supor serem a mesma coisa. Mas Valdemar Pereira explicou-me a diferença. “Canecadinha” é a pequena caneca de folha-de-flandres em que se bebia antigamente o grogue nos botequins.
Tomar, 16 de Janeiro de 2014
Não é por acaso que a minha crónica roça fundo esta questão.
É que na nossa ilha estamos a viver actualmente um tempe de caniquinha. Basta
ir até lá e ver com olhos de ver."
É claro, Fernando, que te reconheço o direito de discordar e ter uma interpretação diferente da intenção do poeta ao empregar o termo "caniquinha". Vê-se que o termo "caniquinha" é que está no cerne da dúvida. Para ti, e conforme a tua interpretação, "caniquinha" só pode ter o significado de tempos áureos. "Tempe de Caniquinha" seria então, na visão do poeta, tempo de abastança. Contudo, a menos que o teu pai tenha introduzido uma nova expressão na linguagem local, não se vê uma relação clara entre o significante e o significado. Ao passo que se entendermos "tempe de caniquinha" como significando tempo em que as pessoas andavam de canequinha na mão a pedir esmola, o sentido surge claro e directo.
Além do mais, se pensares bem, só revestindo o último significado o poema ganha relevância poética, na medida em que traduz, não apenas a exaltação de tempos de maior abastança, como também a denúncia de tempos de pobreza e dificuldades. Este é aliás o drama da nossa ilha, uma ilha que cresceu e se fez grande no contexto do território e que acabou por ser vítima das armadilhas da história. O teu pai teve essa percepção e exprimiu-a artisticamente. Não julgo que a intenção dele se tenha limitado à consagração festiva dos bons tempos, pois isso tiraria dimensão poética ao texto, banalizando-o, ao fim e ao cabo. Homem sensível e com o coração sintonizado com as angústias e o sofrimento do seu povo, não acredito que tenha tido outro propósito que não o de denunciar, ainda que discretamente, as dificuldades que sobrevieram aos tempos de prospperidade.
Em todo o caso, toda esta dúvida só valoriza o poema. É que depois de divulgada, a obra deixa de pertencer ao criador para ser pertença de todos, no sentido de fruição e interpretação do conteúdo mensagístico que ela encerra. E a disparidade de interpretações só lhe testemunha valor como produção literária. A poesia verdadeira é isso mesmo.
De há muito que me apoquenta ouvir empregar-se a expressão “tempe d’caniquinha” como significando há muito tempo, diazá. As pessoas têm do poema de Sérgio Frusoni a seguinte síntese interpretativa: “Um vez Soncente era sabe/Era na tempe de caniquinha”. Isso foge completamente ao espírito do poeta que faz através do poema uma veemente denúncia da situação em que vivia o povo, “na mei de miséria tcheu de fome/ tâ embarcá ta ba ‘mbora / sem um papel, sem um nome/ moda um lingada d’carvom”, por oposição aos tempos áureos em que “Atê góte de Manê Jon/ Tá ingordá na gemáda” e “Ciçarône vida airada/ Ta nadába na dnhêr. Sérgio Frusoni remata o poema com um eloquente “Agora ê tempe de caniquinha”.
O Sr Adriano Miranda Lima praticamente me deixa sem argumentos para o texto que até já comecei a escrever, de tal forma me identifico com o que ele escreveu. Não poderia apresentar melhor argumentação para justificar a expressão “tempe de caniquinha”. Eu não vejo como não se pode concordar com ele. Falta verificar se os pedintes utilizavam a caniquinha de moto próprio ou se por imposição. Num ou noutro caso, não há que esquecer que os pedintes andariam sujos e andrajosos, em tempo de doenças como a lepra e havia que evitar qualquer risco de contacto físico. Se os beneméritos se sentissem ameaçados não haveria esmola. Nenhum pedinte quereria correr esse risco. Certamente que, mesmo na mei de miséria, tcheu de fome, não seria todo o povo a andar de caniquinha na mão. Sérgio Frusoni usa o termo “caniquinha” para caricaturar esse tempo de fome e miséria em que, “disanimado nha bida/ M jobi santa pam bai Santomé/ M toma boti m bai pa bordo/ M rumado moda saco/ Canto dia sem quebra djudjum/ Canto dia sem mata fomi / Na purom di barco ta bai (Codê di Dona). É esse tempo que a gente canta na galhofa “Um vez Soncent era sabe”?
Eu ainda vi gente a pedir esmola, de caniquinha na mão mas só à porta da igreja. Não esquecer que no tempo colonial, mendicidade e vadiagem eram crime.
Importa dizer que o poema “Tempe de caniquinha”, não será um original de Sérgio Frusoni mas antes, aquilo a que se chamaria em linguagem musical, um remix. Ele vai buscar versos de outros poemas seus para compor o poema (ver A poética de Sérgio Frusoni –uma leitura antropológica-por Mesquitela Lima). Quanto a mim, a versão mais correta do poema é a do livro de Mesquitela Lima e a que está no livro “História do Desenvolvimento Urbano de S. Vicente”.
Não vejo motivo para nenhuma confusão entre “caniquinha” e “canecadinha”. A segunda deriva da primeira. Um prato dá uma pratada, um pratinho dá uma pratadinha; uma caneca dá uma canecada, uma caniquinha dá uma canecadinha. Dá-se a um menino uma pratadinha de batata com uma canecadinha de leite e ele vai dormir feliz. Não se chama canecadinha a uma caniquinha mas são sinónimos, uma canecadinha de ou uma caniquinha de.
Espero que um dia, alguém com uma boa voz, algo parecido com o Bana, cante a música com a letra correta, em homenagem merecida de desagravo a Sérgio Frusoni.
Mindelo, 03/12/2016
César Isabel da Cruz
Esquecer!? Ninguém esquece…
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Corrigido no texto. Grato pela correção. Abraço.
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