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... Vai até FRANÇA!

Brito-Semedo, 19 Ago 15

 

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"Arnaldo França, o primeiro nome em que se pensa quando se quer garantias de conhecimento, de cientificidade e de seriedade”

 

– Corsino Fortes, 2005

 

 

O Dr. Arnaldo Carlos Vasconcelos FRANÇA, o decano das letras e dos intelectuais cabo-verdianos, caminha para os 85 anos (n. Praia, 15.Dez.1925), rijo, lúcido e activo, é um invejável depositário de conhecimentos (aqui, bato na madeira para exorcizar qualquer tipo de azar!).

 

Falei há instantes com o Dr. França e impressionou-me o seu sentido prático de encarar a vida e o apreço com que sempre me distinguiu, acabado de reconfirmar de uma forma particular, que me sensibilizou e me encheu de orgulho.

 

Desligado o telefone, passei a fazer o exercício de recordar os momentos e os passos marcantes da minha relação com o Dr. França, na minha caminhada de aprendiz de escritor a académico.

 

Como na lenga-lenga e brincadeiras de infância, A galinha é branca, / vai até à casa do vizinho, / embarca num navio, / Vai até França!

 

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Num 1.º passo, em 1987, encontrava-se o Dr. França bem à frente, incentivando-me e orientando-me num trabalho de pesquisa literária.

 

Já tinha eu “tirado a minha mão de negro” através da minha participação no Simpósio da Claridade, com uma comunicação sobre a ficção do escritor António Aurélio Gonçalves, quando a revista Raízes (Praia, 1977-1984) deixara de ser publicada e o seu director, Arnaldo França, era Ministro-Adjunto das Finanças. Foi por essa altura que o Dr. França recebeu o convite do Embaixador de Portugal na Praia, o escritor Fernandes Fafe, para participar de uma homenagem que pretendia fazer a António Pedro [da Costa] (Praia, 1909 - Moledo do Minho, 1966), figura destacada do surrealismo português, pintor, dramaturgo, encenador, ficcionista, ensaísta e poeta, autor de o Diário (Praia, 1929). Escusando-se, devido às suas funções, o Dr. França indicou-me no seu lugar tendo-me dispensado o seu apoio na elaboração da comunicação, com orientações preciosas, comunicação essa que foi apresentada na Praia e no Mindelo.

 

Num 2.º passo,em 2003, situava-se o Dr. França acima, quando foi convidado para integrar o júri do meu doutoramento, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o que, modestamente, recusou.

 

Pela temática da tese ("Cabo Verde: A Construção da Identidade Nacional – Análise da Imprensa entre 1877 e 1975"), o Prof. Doutor Mesquitela Lima, meu orientador, achou que o Dr. França, tendo em conta o seu percurso e conhecimento da realidade cabo-verdiana, seria a pessoa indicada para integrar o júri. Feito o contacto, o Dr. França declinou o convite alegando que não tinha o grau compatível! – “Só o França!... Então ele não vê que isso é um reconhecimento à sua pessoa?” – dizia-me o Prof. Mesquitela Lima, visivelmente contrariado.

 

Num 3.º passo, em 2007, estava ele à frente de todos, como referência de intelectualidade e depositário de memórias.

 

Estava o Dr. França ausente em Portugal em tratamento, devido a uma queda seguida de fractura, que nos deixou a todos preocupados, quando me encontrei com a amiga Fátima Bettencourt no Nhô Eugénio Livraria. Ela precisava de confirmar determinada informação, de que eu não tinha a certeza.

 

– Hum, disse eu, isto só consultando o Dr. França, mas ele não está…

 

Ao que a Fátima Bettencourt me retrucou:

 

– Mas o Dr. França não pode ausentar-se por muito tempo sem nos avisar!

 

Caindo em nós, demos umas boas gargalhadas.

 

Num 4.º passo,em 2010, pelo 35.º aniversário da Independência Nacional, encontrei-me ao lado do Dr. França na cerimónia de condecoração pelo Presidente da República.

 

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Por essa ocasião, “em reconhecimento pela importante contribuição para a promoção e o desenvolvimento da cultura nacional”, o Dr. França foi condecorado com a Medalha da Ordem do Dragoeiro de 1.ª Classe – a mais alta distinção na área da Cultura – estando eu a seu lado, também a ser condecorado, com a Medalha do Vulcão de 1.ª Classe. Uma justa homenagem ao nosso decano e um momento marcante e de muito orgulho para mim.

 

Num 5.º passo, em 2010, faz-me ele passar à frente, com a “entrega dos seus papéis”.

 

Encontrei-me com o Dr. França no gabinete do Dr. Joaquim Morais, Presidente do Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, e, no seu jeito calmo e simpático, foi citando um provérbio badio: – “Sabe, Brito, morte stá bidjáku...! (a morte está velhaca…!)… Estou a organizar os meus livros e a ver os meus papéis e pensei em dar-lhos, caso os queira, claro! São fotocópias, anotações, muitas já publicadas, preparação de aulas sobre a literatura cabo-verdiana, papéis vários, que pode aproveitar ou usar com os seus alunos”.

 

Agradeci a deferência e disponibilizei-me para lhe fazer uma visita logo que tivesse os papéis prontos.

 

Passado alguns dias, liguei para sua casa para saber do seu estado de saúde e a esposa disse-me que havia dois dias que o Dico lhe tinha pedido o meu número de telefone porque me queria falar. Passada a chamada, o Dr. França voltou ao assunto dos papéis, porque “a morte está velhaca”, etc., etc.,  a querer combinar comigo um dia para ir a sua casa para me fazer a entrega.

 

Desliguei o telefone e fiquei a pensar no significado dessa atitude e na grandeza desse gesto. Recordei-me, então, do relato bíblico do Profeta Elias, segundo o qual não morreu, mas foi transladado para o Céu. No momento da sua elevação, Elizeu, seu servo e discípulo, pediu-lhe a capa como símbolo do seu saber. E, tal como Elizeu, eu digo:

 

– Dr. França, Mestre, que a sua capa caia em mim!

 

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Fotos M. Catela

 

Praia, 13 de Novembro de 2010

  

 

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14 comentários

De Ernestina Santos a 15.12.2010 às 22:13

Como cabo-verdiana que vive na diáspora, é uma alegria quando consigo aceder à produção literária cabo-verdiana, difícil de obter fora de Cabo Verde. Tive a sorte de ouvir o meu pai falar sobre o Dr Arnaldo França várias vezes, o que me despertou o interesse para ir consultando tudo o que me vinha parar às mãos sobre este emérito intelectual.

Entre as obras que tive a sorte de consultar, destacam-se "A literatura cabo-verdiana no contexto das literaturas africanas de língua portuguesa" e "O nascimento e reconhecimento de uma literatura em prosa", assim como a colectânea de poesia "No reino de Caliban", o que é uma gota de água no oceano, tendo em conta a diversidade da sua produção literária.

A título de curiosidade, lembro-me de
uma questão abordada por amigos em fotologs, espalhados pelos quatro cantos do mundo, sobre a Rotcha Scribida, na Ribeira de Prata/Boavista, e a Pedra do Letreiro, em Janela/Santo Antão, que trouxe referências interessantes sobre a opinião isenta do Dr Arnaldo França sobre o assunto como sociólogo: as notícias cimentadas ao longo dos anos de que as inscrições rupestres são testemunho da existência de antigos navegadores que passaram pelas ilhas, é uma forma dos intelectuais cabo-verdianos procurarem uma identidade própria face ao problema do colonialismo, defendendo por isso que as ilhas cabo-verdianas terão feito parte da antiga Hespérides, da Atlântida.
(continua)

De Anónimo a 16.12.2010 às 12:16

Comentário apagado.

De Brito-Semedo a 16.12.2010 às 12:27

Obrigado, ernestina, pelo comentário de homenagem ao Dr. França! Isto dava um post, como os dos outros amigos que aqui escreveram!
Quando eu for Grande, quero ter feito coisas para os meus Amigos me poderem evocar assim, mas, "ah, calé ", esse dom não é para qualquer um! Longa vida ao Dr. França! Um abraço!

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